10 de abril de 2010





Neal Cassady

O ritmo da escrita Beat


     Controlei este terror infantil na minha primeira viagem de trem, um instante antes de pular para dentro dele, segundos antes da partida, com meus braços ainda carregados de galinha frita fria, saída fresca da fazenda de tia Eva perto de Unionville. Tínhamos vindo no caminhão que transportava gasolina do primo Ryal, e então, por pura sorte, pegamos essa longa carona expressa, que rodou a noite inteira. Finalmente, numa cidade do centro de Kansas, o trem parou, e a maioria dos mais ou menos doze vagabundos amontoados no nosso vagão de carga concluiu corretamente que o suprimento de água da locomotiva tinha se acabado; assim, enquanto o tênder era enchido, diversos deles, meu pai inclusive, desapareceram por um caminho escuro numa busca apressada por água para todos nós bebermos. Embora sabendo que em poucos minutos uma locomotiva é reabastecida, eles sentiam-se obrigados a aproveitar essa oportunidade — provavelmente a única por um bom tempo  — de procurar um refresco para eles e para mim, “o coitado do guri”. Lu, em especial, sentia sede, consequência óbvia de toda aquela galinha salgada devorada em poucos minutos, e meus choramingos de protesto encontravam a simpatia dos homens de garganta seca, para quem minha presença  emprestava temporariamente a dignidade da motivação desinteressada, a tal ponto que, notando como meu ruidoso sofrimento dispensava seus próprios gemidos habituais, fiquei suficientemente consciente da minha própria importância para tentar controlar meus soluços.
     De repente, o vagão de carga começou a mover-se abaixo de mim. Esquecendo instantaneamente minha refletida determinação de acalmar o rosto contorcido, me voltei ansiosamente, dando as costas aos demais, para buscar na escuridío sinais do retorno do pai. Eles não apareceram, de forma que, à medida que o trem ia ganhando maior velocidade, eu estava de novo berrando de pé na porta. Logo estávamos indo depressa demais para esperar que qualquer cabecinha surgisse de dentro da noite e pulasse para o nosso vagão de carga, e os vadios, aparentemente conscientes de que eu poderia pular, juntaram-se uns aos outros para barrar meu caminho para a porta. Primeiro tive um espasmo suficientemente frenético para ser histérico, gemidos, uivos, etc.; depois, desabei no meu canto em soluços que vinham mais lentamente, e comecei a pensar no apuro em que me encontrava, pois, tendo perdido meu pai e estando certo de que ele nunca poderia voltar, me senti terrivelmente sozinho. Encadeados, dois pensamentos básicos gradualmente predominaram: como voltar para Denver só, e como absolver a minha culpa por esta catástrofe. Ali deitado, me esforcei para descongelar minha mente de seis anos e meio e vencer a preocupação de encontrar o caminho de casa. Ainda assim, nunca realmente formulei nada, uma vez que, geograficamente mal podia esboçar um plano, e, o tempo todo, para piorar, muitos pensamentos arrependidos me apunhalavam, tais como “se nós não tivéssemos ido, ou se voltássemos em segurança, eu juraria nunca mais beber água, mesmo com toda a sede”. Eu sabia o quanto isso era impraticável, porque então morreria, mas foi isso que escolhi e preferi deliberadamente assim, sentindo que tais extremos de alguma maneira contrabalançariam tudo para ter meu pai de volta. Também, desta forma, poderia ser perdoado pelo que eu considerava minha aflitiva culpa pela sede que, em suma, o havia afastado de mim. Naturalmente, os vagabundos tentaram me acalmar, mas eu rejeitava suas atenções de tal forma, que, embora parecesse uma teimosia normal, realmente espontânea provocada pela zanga, ela acabou desencadeando, depois de diversas horas de recusa contínua a qualquer consolo, um orgulho paradoxal de autoconfiança que finalmente venceu o meu medo o suficiente para permitir um sono entorpecido.
     Por milhas que para mim foram infindáveis, nosso trem seguiu roncando pela planície desolada, e já estávamos no fim do dia quando chegamos a Goodland, Kansas, e ele parou de novo. Eu tinha passado as horas desde o começo da aurora rolando sobre enormes folhas de papelão espalhadas em grossas pilhas ao longo de um dos lados do chão do carro de carga, e, quase recuperando um sono convulso, ainda me recusava a falar com os vadios que compartilhavam a cama comigo, por mais que eles tentassem se aproximar de mim. O trem tinha parado não fazia nem três minutos, comigo acordado apenas o suficiente para brincar com a idéia de sair para esticar as pernas, embora o temor de uma caminhada encabulada em meio àquelas figuras relaxadas que conversavam me cortasse. Não tinha me atrevido a levantar a cabeça quando, rápido e silencioso ao chegar de surpresa, meu pai me agarrou e me ergueu desajeitadamente curvado num longo abraço choroso! Nunca tinha me ocorrido que, ainda que o trem, saindo antes do esperado, o impedisse de retornar ao nosso vagão específico, ele poderia conseguir pegar um outro à frente do vagão de alojamento, e, na realidade, estar no mesmo trem o tempo todo.  Porém, talvez por medo de atravessar por cima de terrenos tão difíceis, como toras de madeira e maquinarias, talvez porque achasse que eu estaria bem sob os cuidados dos seus compadres, que deviam ter imaginado que ele estava no trem, e mesmo tivesse chegado a tempo de alcançá-lo, mas não podendo descer para o nosso carro com o trem em movimento, ele decidiu esperar por urna parada para poder retornar. Assim, me foi negado o berro reconfortante que poderia ter vindo minutos depois da malfadada parada para água. Se meu pai pelo menos desconfiasse que, estranhamente, dentre todos os pensamentos que a boa vontade deles produziu para me convencer de que ele me re-encontraria, os vagabundos não tinham dito urna só vez que havia a possibilidade dele ter pulado para dentro na parte de tras do trem! Meu espanto então, ja que mnguém tinha me falado dessa possibilidade, nem na realidade tive a idéia eu próprio, foi duplamente sentido quando os ouvi discutindo, desculpando-se com argumentos, a ocorrência dessa falta de raciocínio coletiva.


[...]


      Um acordo havia sido firmado: a partir de então eu ficaria com meu pai somente os noventa dias do verão, e com minha mãe durante o ano escolar, pois os que ganhavam dinheiro, Ralph e Jack, produzindo bebida clandestina prosperamente, tinham, na nossa ausência, feito com que ela se mudasse, com Jimmy e a bebê Shirley, para um apartamento maior, mas não muito melhor, num edifício na esquina da 26 com rua Champa. O prenúncio da minha transferência para esse novo tipo de combinação dupla ainda por vir chegou num dia, pouco tempo depois de nós voltarmos, quando os dois Irmãos Negros adentraram pelas portas do Metropolitan — sem dúvida pela primeira vez — ostensivamente para ver como eu estava passando. Meu pai imediatamente assumiu sua postura típica. De pé no saguão, diante de seus companheiros de álcool, e consciente de seus olhos atentos testemunhando a visita dos garotos crescidos, ele começou com a habitual bravata sobre filho — e já o tinha feito para muitos —, um relato dolorosamente orgulhoso, ainda que esquisito e vacilante pela ignorância, da minha bravura durante as complexidades da nossa bem-sucedida viagem de duas mil milhas. Deve ter sido o silêncio de meus irmãos que o enganou, e o fato deles terem ficado lá com sorrisos de filho para pai, deixando que o velho continuasse a falar assim, gratuitamente, por alguns minutos num raro show de amenidade social-pusilânime. Meu pai, tendo finalmente terminado o ingênuo conto de bravura infantil, iniciou um inocente monólogo de bêbado sobre as galinhas da tia Eva, quando todo o pensamento foi subitamente escorraçado de seu cérebro, no instante em que eles viraram a moeda da cena passando de dóceis filhos postiços para monstros bárbaros fingindo com horrorizada certeza que estavam no seu direito, e começaram a espancá-lo, revezando-se. Um o derrubava e ficava de pé sobre ele para que o outro o esmagasse contra o chão, o tempo inteiro empurrando-o no cacete para a saída, enquanto mantinham um papo cheio de injúrias, interrompido somente por risadinhas ocasionais e grunhidos de esforço. Finalmente pararam, mas só porque estavam com o braço cansado, sem fôlego, ou com os nós dos dedos doendo, com meu pai já apagado totalmente há muito tempo. Assim, com um último golpe para deixá-lo atravessado na porta, meus meio-irmãos desprezaram todos os covardes amigos vagabundos dele como se nem estivessem lá, todos eles parados de olhos arregalados e pregados em seus lugares, e me arrastaram, ainda levando o mesmo papo, para a minha mãe.




 

Trechos extraídos de:


"O Primeiro Terço", Neal Cassady. 
L&PM POCKET.







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