20 de fevereiro de 2007

HOMENAGEM:


Jack Kerouac



Voracidade Pela Estrada e Escrita



      "This is not América", canta David Bowie na música que leva o mesmo nome. Mas o que é a América? Seria Manhattan e seus yuppies, o parque bélico, o patriotismo e heroísmo afetados? Seria a América a "terra dos livres e bravos", das oportunidades e dos bem-sucedidos? Seria ela todos esses chichês que "nos empurraram com os enlatados dos USA de 9 a 6". Há quem considere a América uma terra decadente, brutal, onde os senhores da guerra planejam genocídios no conforto de suas salas luxuosas sem hesitar em sacrificar gerações em empreendimentos beligerantes. Outros a veem como continente de um povo bitolado, esmagado pela máquina capitalista que já passou do auge e agora decai por conta da especulação financeira, última coqueluche do capital, sopro que proporcionou um último ciclo de expansão econômica paliativo do sistema.
      Penso que a América tem um pouco de tudo isso, como qualquer lugar do mundo. Ninguém nega que ela é fortemente imperialista, que a cidadania na "terra dos livres e bravos" tenha suas falhas e sirva de retórica quando convém a determinados interesses, como no caso dos bombeiros nova-iorquinos, exaltados na histeria patriótica do 11 de setembro como heróis, retratados em filmes e seriados posteriores ao atentado. Tudo muito bonito e romântico, ao bel prazer do circo virtual hollywoodiano, mas, na realidade, longe da glória dos telões, a estética muda drasticamente, e o tratamento dispensado a tais heróis é desproporcional, haja vista o caso dos bombeiros afetados que trabalharam na limpeza do WTC. Os falecidos foram enterrados com pompa, porém, os sobreviventes ficaram esquecidos. Invalidos, sem terem como voltar ao serviço, há aqueles que lutam em tribunais a fim de conseguirem auxilio financeiro às medicações que têm que tomar em decorrência de problemas pulmonares crônicos ocasionados pela inalação da poeira tóxica dos escombros. Há quem necessite de até dez doses diárias de medicamentos nada baratos.
      Portanto, vamos deixar de lado os clichês sobre a América, por um momento, e tentar desmisificá-la. E onde entra o Kerouac nesta história toda? Bom, o Kerouac foi um cara que escreveu bons livros expondo as vivências de um jovem americano nos USA, com algumas descidas ao México, tudo num contexto cultural americano que não conincide com o imaginário das massas. Livros recheados de sensibilidade e valores humanos universais relativos à juventude. A obra de Kerouac mostra uma América diferente daquela do noticiário, e revela uma parcela considerável da juventude americana de sua geração através dele e seus amigos. Juventude, diga-se de passagem, para além da idealização dos personagens literários e dos estereótipos de rebeldia juvenil.
      O livro do escritor homenageado nesta postagem trata isto de forma lírica. Está cheio de idealismo inocente, amizade, culto à literatura, temas por si próprios atraentes, mas que em JK adquirem belos adornos de prosa poética:

      A pedra contra a qual acampamos era uma maravilha. Tinha dez metros de altura e dez de base, quase um quadrado perfeito, e árvores retorcidas inclinavam-se sobre ela para olhar para nós lá embaixo. (...)

(...) Foi divertido descer a trilha, mas, mesmo assim, a certa altura, me senti cansado como nunca, mais do que naquele infinito vale de pedras, mas já dava para ver o albergue do lago lá embaixo, uma lampadazinha de luz meiga, (...)

      Trata-se do "The Dharma Bums".
      O melhor livro do Kerouac que li (alías, provavelmente, o melhor entre todos que já li na vida) foi o "The Dharma Bums", editado em solo tupiniquim como "Os Vagabundos Iluminados". Isso porque, nessa obra, Kerouac consolida um estilo de narrativa expressa que torna a leitura fluída de uma palavra a outra, de uma frase à outra até o final do parágrafo com a idéia claramente absorvida pelo leitor. Chamo isso de "leitura líquida", que, numa analogia meio surreal, seria como pegar o livro em questão e espremê-lo num copo para beber o conteúdo no "guti-guti". Alíás, é no "guti-guti" que se bebe quando se tem muita sede, e quem ler a primeira página dos Vagabundos dar-se-á conta de que está sedento, dado a ótica que essa história proporciona da vida.
      Independente daquilo que se rotulou como geração "beat", ou através de outras siglas como "hippie", "yuppie", etc, que definharam a subjetividade em movimentos de massa, temos alguns indivíduos eleitos como personificação do comportamento de uma geração. Não que desejassem assim, aliás, não foi Kerouac o iventor do termo "Beat", assim como não foi Jesus quem idealizou o Catolicismo. Dizem que Jack não lidava bem com a fama repentina, muito menos com toda lisonja afetada que lhe rendiam ao idealizar o escritor. No extremo oposto houve os ataques pessoais da crítica literária ao seu estilo de escrever. Palavras podem se tornar setas afiadas quando direcionadas hostilmente a alguém sensível como Kerouac.
      No livro Os Vagabundos Iluminados, Jack Kerouac assume a figura do protagonisa Ray Smith, jovem que vive aventuras transcendentais na companhia de um grupo de amigos, sobretudo, Japhy, que o levava por incursões às montanhas californianas. Essas páginas, em especial, têm o sabor da felicidade encontrada nas coisas simples como a contemplação da natureza. Ray apresenta-se como alguém que ainda não está absorvido pela necessidade preemente de se estabelecer numa vida estável, nos moldes do sonho americano, o que fica claro quando surge um contraponto a isso personificado na figura do cunhado. A certa altura da história, Ray vai passar um tempo na casa da irmã, e a dor do cunhado é revelada através de um diálogo onde vem à tona a situação de um marido assalariado, cuja vida gira em torno da preocupação em sustentar casa e família.
      Confesso que também já vivi com uma mochila nas costas, vagando por aí, transitando entre comunidades budistas gaúchas e catarinenses. Já vivi acampado no mato, ajudando a construir um templo budista na Encantada em Santa Catarina, comendo arroz, bananas e bergamotas que encontrava, além dos sobejos eventuais dos moradores das cercanias. Adorava essa vida, mas estava duro. Retornando à "civilização" fui trabalhar num supermercado, o que foi bom, pois descobri no setor de bazar uma grande história; tenho certeza que não há outra como ela. Como já sujeri, o estilo fuido de Kerouac dá a impressão de que se está bebendo a história, assim como o vinho licoroso "Ruby", preferido de Ray Smith. Aliás, também abasteci garrafas desse vinho nas gôndolas do mercado. A capacidade de expressar-se com fluência revela a forma ávida como o escritor digitava as teclas da máquina de escrever. Kerouac usava rolos de papel de teléx em sua máquina para não precisar ficar trocando de folha a toda hora. Para se ter uma idéia, dos originais de "On The Road" que chegarm à editora, 120 páginas tiveram que ser suprimidas dado a extensão da obra e a inviabilidade de editar tudo. Dizem que esse livro foi escrito em menos de um mês.
      Depois de concluir a leitura dos Vagabundos, emprestei-o a uma amiga. Ela acabou se mudando para Floripa com ele, e na última vez que nos correspondemos disse que o livro estava não sei com quem, nem onde, mas não era sua região. Parece que Jack não descança de perambular nem em papel. Recentemente comprei um novo volume e comecei a ler de novo, pois minha primeira leitura foi muito ávida, claro, bastante intensa. Atualmente estou saboreando bem devagar; é fácil ler páginas ininterruptas e já estou na metade do livro. Tento ter cuidado para ir devagar aproveitando, pois a obra tem camadas a serem desdobradas, mas, sobretudo, a história tem o sabor da vida como nós a merecemos: livre e celebrada. Não devemos esquecer nunca, nem por um momento, que todos nós merecemos sentir prazer em viver, e Kerouac mostra que isso é natural em Os Vagabundos Iluminados.
      Transcrevo, abaixo, alguns trechos do livro, mas, antes, uma breve biografia de J.K..


S.E.



Biografia Resumida




    Jack Kerouac nasceu em Lowell, Massachusetts, em 1922; era o mais novo de três filhos de uma família franco- americana. Estudou em escolas católicas e públicas locais e, como jogava futebol americano muito bem, ganhou uma bolsa para a Universidade de Columbia, na cidade de Nova York, onde conheceu Neal Cassady, Alien Ginsberg e William S. Burroughs. Largou a faculdade no segundo ano, depois de brigar com o técnico de futebol e juntou-se à Marinha Mercante — dando início às jornadas infindáveis que se estenderiam pela maior parte de sua vida. Seu primeiro romance, The town and the city, saiu em 1950, mas foi On the road — Pé na estrada, publicado em 1957, rememorando suas aventuras ao lado de Neal Cassady, que exemplificou para o mundo aquilo que ficou conhecido como “a geração Beat” e fez com que Kerouac se transformasse em um dos mais controversos e famosos escritores de seu tempo. A esta, seguiu-se a publicação de vários outros livros seus, entre eles Os vagabundos iluminados, Os subterrâneos e Big sur. Kerouac considerava-os todos parte de A lenda de Duluoz (The Duluoz legend). “Na minha velhice”, escreveu, "pretendo reunir todo o meu trabalho, deixar a enorme prateleira cheia de livros lá,morrer feliz.” Ele morreu em St. Petersburg, Flórida, em 1969, aos 47 anos. Os Vagabundos Iluminados, pág. 5 (Coleção L&PM Pochet).




Os Vagabundos Iluminados
(The Dharma Bums)


(...)


"Bom, Smith, já está na hora de você ter as suas contas místicas, e você pode ficar com estas", e me entregou contas marrons de madeira presas umas às outras com um cordão forte, preto e brilhante, que saía da última conta grade, formando no final um laço bonito.
      "Ah, você não pode me dar uma coisa dessas, essas coisas vêm do Japão, não é?"
      "Eu tenho um outro conjunto preto. Smith, aquela reza que você fez para mim hoje vale esse conjunto de contas místicas, mas você pode ficar com ele de qualquer forma." Alguns minutos mais tarde, ele acabou com o resto do pudim de chocolate mas assegurou-se de que eu ficasse com a maior porção. Então, quando arranjou galhos sobre a pedra da clareira e estendeu o poncho por cima, assegurou-se de que o saco de dormir dele ficasse mais longe do fogo do que o meu, para que eu ficasse bem aquecido. Ele praticava caridade o tempo todo. Aliás ele me ensinou a fazer isso também, e uma semana depois eu lhe daria camisas de baixo bacanas e novas que tinha encontrado na loja de caridade. Ele retribuiria imediatamente, presenteando-me com uma vasilha plástica para guardar comida. De brincadeira, dei a ele uma flor enorme do quintal de Alvah. Solenemente, um dia depois, ele me traria um buquezinho de flores colhida nas floreiras das ruas de Berkeley. "E você também pode ficar com os tênis", ele disse. "Tenho um outro par mais velho do que esse, mas tão bom quanto."
      "Ah, não posso aceitar todas as suas coisas."
      "Smith, você não percebe que é um privilégio praticar o ato de dar presentes aos outros." O modo como ele o fazia encantador; não havia nada brilhante nem natalino naquilo, mas era quase triste, e às vezes os presentes dele eram coisas velhas e surradas mas tinham o charme da utilidade e a tristeza de seu ato de presentear.
      Rolamos para dentro de nossos sacos de dormir, àquela altura fazia um frio congelante, por volta das onze horas, e conversamos um pouco mais, até que simplesmente não se ouviu mais resposta vinda de um dos travesseiros e logo estávamos dormindo. Enquanto ele roncava, eu acordei e fiquei lá deitado de barriga para cima com os olhos nas estrelas e agradeci a Deus por ter participado dessa escalada. Minhas pernas estavam melhores, meu corpo todo parecia forte. O estalar das brasas que iam arrefecendo pareciam Japhy fazendo pequenos comentários a respeito da minha icidade. Olhei para ele, a cabeça enfiada dentro do saco dormir de pena de pato. A forma do corpo dele enrodilhado era a única coisa que eu conseguia enxergar naqueles quilômetros de breu, tão densa e nítida com o ávido desejo ser bondosa. Pensei: "Que coisa estranha é o homem... como diz a Bíblia, 'Quem conhece o espírito do homem e olha para cima?'. Este pobre rapaz, dez anos mais novo do que eu, está fazendo com que eu pareça um tolo que esqueceu, durante os recentes anos de bebedeira e decepção, todos os ideais e prazeres que conhecia anteriormente, ele não liga a mínima para o fato de não ter dinheiro nenhum: não precisa de dinheiro nenhum, tudo de que necessita está dentro de sua mochila com aqueles pacotinhos de comida desidratada e um bom par de sapatos e lá vai ele desfrutar dos privilégios de um milionário em um ambiente desses. Mas, de qualquer modo, que milionário doente conseguiria chegar a esse rochedo? Nós demoramos o dia inteiro para escalá-lo". E prometi a mim mesmo que começaria uma nova vida. "Vou vagar por todo o Oeste, as montanhas do leste e o deserto, com uma mochila nas costas e fazer a coisa do modo mais puro." Consegui pegar no sono depois de enfiar meu nariz dentro do saco de dormir e acordei mais ou menos ao amanhecer, tremendo, o frio do chão tinha se infiltrado no poncho e no saco de dormir e minhas costelas se apoiavam sobre uma umidade mais úmida do que a de uma cama fria. Minha respiração saía em forma vapor. Rolei para as costelas do outro lado e dormi mais pouco: meus sonhos eram sonhos frios e puros como água gelada, sonhos alegres, não pesadelos.
      Quando acordei de novo, a luz do sol tinha assumido um tom alaranjado imaculado que atravessava as escarpas a leste e caía através dos galhos dos pinheiros aromáticos, e tive a mesma sensação de quando era menino e era hora acordar para sair para brincar durante todo o sábado, com meu macacão de frio. Japhy já estava de pé cantando e soprando dentro das mãos em concha ao redor de uma fogueirinha. Havia geada branca sobre o chão. Ele deu uma corridinha até a beirada da encosta e gritou “Yodelê-i-ê" e, por Deus, ouvimos o grito voltar diretamente para nós, de Morley, bem mais próximo do que na noite anterior. "Agora ele está chegando. Acorde, Smith, e tome uma xícara chá quente, vai lhe fazer bem!" Levantei-me e pesquei meus tênis para fora do saco de dormir, onde tinham ficado quetinhos a noite toda, e os calcei, e coloquei minha boina, e dei um salto e corri alguns quarteirões sobre o gramado. A superfície do riacho raso estava toda congelada, a não ser no meio, onde um fio corria tilintando. Deitei ali de barriga para baixo e tomei um gole profundo, molhando o rosto. Não há nenhuma sensação no mundo como lavar o rosto com água gelada em uma manhã na montanha. Então voltei e Japhy estava esquentando as sobras do jantar da noite anterior que continuavam boas. Então fomos até a ponta encosta e gritamos "Hu" para Morley, e de repente o avistamos, uma pequena silhueta a três quilômetros de distância no vale de pedras, movendo-se como um pequeno ser animado naquele imenso vazio. "Aquele pontinho ali embaixo é o nosso espirituoso amigo Morley", disse Japhy com aquela voz retumbante e engraçada de lenhador.
      Em cerca de duas horas, Morley estava a uma distância que já dava para conversar conosco e começou a falar sem parar enquanto tratava das últimas pedras, até chegar ao lugar onde estávamos sentados sob o sol já quente, esperando.
      "A Sociedade de Auxílio das Senhoras disse que eu devia vir até aqui para ver se vocês, rapazes, gostariam de espetar fitas azuis na camisa, dizem que ainda sobrou um monte de limonada de limão-rosa e que Lord Mountbatten está ficando muito impaciente. É de se pensar que elas vão investigar a fonte dos problemas mais recentes do Oriente Médio ou aprender a saborear melhor o café. Imagino que com um par de cavalheiros literatos como os senhores elas podia aprender a prestar mais atenção aos modos...", e assim por diante etc. etc., sem razão nenhuma, tagarelando sob aquele céu azul matinal feliz sobre as pedras com aquele sorriso debochado dele, suando um pouco devido ao longo esforço matutino.
      "Bom, Morley, está pronto para escalar o Matterhorn?"
      "Estarei assim que trocar estas meias molhadas."

(págs. 80 à 83)

(...)


      Quando acordei no dia seguinte, não conseguia evitar um sorriso ao me lembrar de Japhy parado todo encolhido do lado de fora do restaurante, no meio da noite, imaginando se o deixariam entrar ou não. Foi a primeira vez que o vi ter medo de alguma coisa. Planejava conversar com ele a respeito dessas coisas, naquela noite, quando ele viria me visitar. Mas naquela noite aconteceu de tudo. Primeiro, Alvah saiu e se demorou algumas horas e eu estava sozinho lendo quando de repente ouvi uma bicicleta no quintal e olhei e era Princess.
      "Cadê todo mundo?", diz ela.
      "Quanto tempo você pode ficar?"
      "Tenho que ir embora agora mesmo, a não ser que ligue para a minha mãe."
      "Vamos ligar."
      "Tudo bem."
      Fomos até o telefone público do posto de gasolina da esquina, e ela disse que estaria em casa em duas horas, e quando caminhávamos de volta pela calçada coloquei o braço em volta da cintura dela, mas com os dedos fazendo cócegas em sua barriga e ela disse: “Aaaah, isso é demais pra mim!”, e quase caiu no chão sobre a calçada e mordeu minha camisa bem quando uma senhora vinha em nossa direção olhando para nós de cara feia e brava e depois que ela passou nos atracamos em um beijão louco e apaixonado sob as árvores do anoitecer. Corremos para o chalé onde ela passou literalmente uma hora rodopiando nos meus braços e Alvah chegou bem no meio dos nossos últimos ensinamentos de bodisatva. Tomamos nosso banho costumeiro juntos. Era ótimo filcar na banheira cheia de água quente conversando ensaboando as costas um do outro. Coitada da Princess, ela falava tudo a sério. Eu realmente me sentia bem em relação a ela, e cheio de compaixão, e até a preveni: "Cuidado para não ficar louca e se enfiar em orgias com quinze caras no topo de uma montanha".
      Japhy chegou depois que ela foi embora, e daí o Coughlin chegou e de repente (tomamos vinho) uma festa enlouquecida se instalou no chalé. Começou com Coughlin e eu, já bêbados, andando de braços dados pela rua principal da cidade carregando algum tipo de flor imensa, quase impossivelmente gigantesca, que tinhamos achado em um jardim qualquer, e um garrafão novo de vinho, gritando haicais e hus e satoris para qualquer um que passava pela rua e todo mundo sorria para nós. "Caminhei oito quilômetros carregando flor enorme", berrou Coughlin, e então passei a gostar dele, ele tinha aquela aparência nada a ver de bobalhão acadêmico gordinho, mas era um homem de verdade. Fomos visitar um professor do Departamento de Inglês da Universidade da Califórnia que já conhecíamos e Coughlin deixou os sapatos no gramado e entrou dançando na casa do professor estupefato, na verdade até o assustou um pouco, apesar de Coughlin àquela altura já ser um poeta bem conhecido. Descalços, carregando nossas flores enormes e nossos garrafões, voltamos para o chalé e já eram umas dez da noite. Eu tinha acabado de receber naquele dia algum dinheiro pelo correio, uma bolsa de estudos de trezentos paus, de modo que disse a Japhy: "Bom, agora eu já aprendi tudo, estou pronto. O que você acha de me levar até Oakland amanhã e me ajudar a comprar uma mochila e todo o equipamento para que eu possa partir para o deserto?"
      "Boa, vou pegar o carro do Morley emprestado e venho te buscar de manhã bem cedo, mas agora, o que acha de me dar um pouco de vinho?" Liguei a luminariazinha coberta com a bandana vermelha e servimos o vinho e nos acomodamos por ali e todos ficamos conversando. Foi uma ótima noite de conversas. Primeiro, Japhy começou a contar sua história de vida mais recente, tipo quando ele era da marinha mercante no porto de Nova York e andava com uma adaga na cintura, 1948, o que surpreendeu a Alvah e a mim, e depois a respeito da garota por quem ele era apaixonado que morava na Califórnia: "Eu tinha uma ereção de quase cinco mill quilômetros por ela, nossa!".
      Então Coughlin disse: "Conte a ele sobre o Grande Ameixeira, Japh".
      No mesmo instante, Japhy disse: "Perguntaram ao Grande Mestre Zen da Ameixeira qual era o significado maior do budismo, e ele respondeu florzinhas do campo, galhos de salgueiro, pontas de bambu, fios de linho, em outras palavras, segura firme, rapaz, o êxtase é generalizado, é isso que ele queria dizer, o êxtase da mente, o mundo não é nada além da mente e o que é a mente? A mente não é nada além do mundo, caramba. Então o Cavalo Ancestral disse: 'Esta mente é o Buda'. Ele também disse: 'Nenhuma mente é o Buda'. Então, quando finalmente foi falar a respeito do Grande Ameixeira, seu garoto: 'A ameixa está madura'".
      "Bom, isso é muito interessante", disse Alvah. "Mais, où sont les neiges d’antan?"
      "Bom, eu meio que concordo com você porque o problema é que essa gente enxergava as flores como se estivessem em um sonho, mas caramba!, o mundo todo é real, Smith e Goldbook e todo mundo age como se fosse um sonho, merda, como se todos eles próprios fossem sonhos ou pontos. Dor ou amor ou perigo fazem com que você volte a ser real, não é verdade, Ray, como quando você ficou assustado naquele penhasco?"
      "Tudo era bem real, era sim."
      "É por isso que os homens da fronteira são sempre heróis e sempre foram meus heróis de verdade e sempre serão. Estão constantemente em alerta quanto à realidade, que pode ser tanto real quanto irreal, que diferença faz, o Sutra do Diamante diz: 'Não forme concepções a respeito da realidade da existência nem sobre a irrealidade da existência’, ou outras palavras assim. As algemas vão ficar macias e os cassetetes vão cair por terra, vamos em frente e sejamos livres de qualquer maneira."
      "O presidente dos Estados Unidos de repente fica vesgo e sai flutuando!", eu grito.
      "E as anchovas vão se transformar em pó!", berra Coughlin.
      "A ponte Golden Gate está rangendo com a ferrugem do pôr-do-sol", diz Alvah.
      "E as anchovas vão se transformar em pó!", insiste Coughlin.
      "Dá mais um gole desse garrafão. Uau! Ho! Hu!" Japhy já pulando: "Tenho lido Whitman, sabe o que ele diz, Cheer up slaves, and horrify foreign despots, ele quer dizer a atitude para o Bardo, o bardo zen-lunático dos antigos caminhos do deserto, vê a coisa toda como um todo cheio de andarilhos de mochilas nas costas, Vagabundos do Darma, que se recusam a concordar com a afirmação generalizada de que consomem a produção e, portanto, precisam trabalhar pelo privilégio de consumir, por toda aquela porcaria que não queriam, como refrigeradores, aparelhos de TV, carros, pelo menos os carros novos e chiques, certos óleos de cabelo e desodorante e bobagens em geral que a gente acaba vendo lixo depois de uma semana, todos eles aprisionados em um sistema de trabalho, produção, consumo, trabalho, produção, consumo, tenho a visão de uma grande revolução de mochilas, milhares ou até mesmo milhões de jovens americanos vagando por aí com mochilas nas costas, subindo montanhas para rezar, fazendo as crianças rirem e deixando os velhos contentes, deixando meninas alegres e moças ainda mais alegres, todos esses zen-lunáticos que ficam aí escrevendo poemas que aparecem na cabeça deles sem razão nenhuma e também por serem gentis e também por atos estranhos inesperados vivem proporcionando visões de liberdade para todo mundo e todas as criaturas vivas, é disso que eu gosto em vocês, Goldbook e Smith, vocês são dois Costa Leste que eu achei que estava morta."
      "Nós achávamos que a Costa Oeste estava morta!”
      "Você trouxe mesmo uma aragem fresca para cá. Você percebe que o granito jurássico puro da Sierra Nevada com suas coníferas altas espalhadas que sobraram da última era glacial e lagos que acabamos de ver são uma das maiores expressões desta terra, pense como a América será verdadeiramente maravilhosa e sábia, se tiver toda esta energia e exuerância e espaço concentrados no Darma."
      "Ah" — Alvah — "esse velho Darma cansado que se foda."
      "Ho! Estamos precisando é de um zende flutuante, que um velho bodisatva possa usar para ir de um lugar a outro e sempre ter a certeza de encontrar um canto para dormir entre amigos e cozinhar seu grude."
      "Os rapazes ficaram felizes, e pediram mais, e Jack preparou o grude, em nome da porta", recitei.
      "O que é isso?"
      "É um poema que escrevi. 'Os rapazes estavam sentados em um bosque, ouvíndo Buddy explicar as chaves. Rapaz, diz ele, o Darma é uma porta... Vejamos... Rapazes, eu digo chaves, porque existe um monte de chaves, mas só uma porta, uma colméia para as abelhas. Portanto me escutem. e eu vou tentar dizer tudo, como ouvi há muito tempo, no Salão da Terra Pura. Para vocês, meus bons rapazes, com dentes encharcados de vinho, que não conseguem entender estas palavras sentados sobre arbustos, vou deixar tudo mais simples, como uma garrafa de vinho, e uma boa fogueira, sob as estrelas divinas. Agora, ouçam, e quando tiverem aprendido o Darma dos Budas do passado e assim desejarem, sentem-se com a verdade, sob uma árvore solitária, em Yuma, no Arizona, ou em qualquer lugar em que estejam, não me agradeçam por ter-lhes contado, o que me foi narrado, esta é a roda que eu estou girando, esta é a minha razão de ser: a Mente é o Criador, sem razão nenhuma, por toda esta criação, criada para ruir'."
      "Ah, mas isso é pessimista demais e parece um sonho bobo", diz Alvah, "apesar de ter um bom ritmo".
      "Vamos fazer um zende flutuante para os rapazes encharcados de vinho de Buddy para que eles se deitem lá e aprendam a beber chá como Ray aprendeu, aprendam a meditar como você deveria aprender, Alvah, e eu serei o monge superior de um zende com um pote cheio de grilos."
      "Grilos?"
      "Isso mesmo, é isso aí, uma série de mosteiros para que os camaradas possam entrar para mosteirar e para meditar, podemos construir grupos de barracos no alto das Sierras ou das Cascades ou como até Ray diz lá no México e formar enormes gangues selvagens de homens santos puros reunindo-se para beber e conversar e rezar, pense nas ondas de salvação que podem se originar em noites como essas, e finalmente convidar mulheres também, esposas, cabaninhas com famílias religiosas, como nos velhos tempos dos Puritanos. Quem é que vai dizer que os tiras da América e os Republicanos e os Democratas são aqueles que vão diz para todo mundo o que eles devem fazer?"
      "O que são os grilos?"
      "Um potão cheio de grilos, me dá mais um gole, Coughlin, com dois centímetros e meio de comprimento com antenas brancas enormes e eu mesmo os encubaria, pequeninos seres sencientes em um arro que cantarão realmente bem quando estiverem adultos. Quero nadar em rios e beber leite de cabra e conversar com sacerdotes e só ler livros chineses e perambular pelos vales conversando com os sitiantes e com os filhos deles. Precisamos organizar semanas para recolher a mente nos nossos zendes, naqueles momentos em que a mente começa a se desmantelar igual a um brinquedo de montar e como um bom soldado você a reorganiza com os olhos fechados, mas claro que tudo isso está errado. Você ouviu meu último poema, Goldbook?"
      "Não, o que tem?"
      "Mãe dos filhos, irmã, filha do velho doente, virgem sua blusa e está rasgada, faminta e de pernas nuas, eu também estou com fome, aceite estes poemas."
      "Ótimo, ótimo."
      "Quero andar de bicicleta no calor de uma tarde quente, usar sandálias paquistanesas de couro, gritar a plenos pulmões para monges zen amigos de pé com suas vestes finas de verão feitas de cânhamo e cabeças raspadas, quero morar em templos com pavilhões dourados, beber cerveja, dar adeus, ir a Yokohama, o grande porto movimentado da Ásia cheio de subalternos e submarinos, esperança, trabalhar por aí, voltar, ir ao Japão, voltar aos EUA, ler Hakuin, ranger os dentes e disciplinar-me o tempo todo enquanto estiver indo a lugar nenhum e portanto aprendendo... aprender que o meu corpo e tudo o mais fica cansado e doente e caído e assim descobrir tudo que existe a respeito de Hakuyu."
      "Quem é Hakuyu?"
      "O nome dele significava Escuridão Branca, o nome dele significava aquele que vivia nas montanhas da Água-Branca-do-Norte, onde eu vou fazer escaladas, por Deus, deve estar cheio de gargantas íngremes de pinheiros e vales bambus e pequenos rochedos."
      "Eu vou com você!" (Eu.)
      "Quero ler a respeito de Hakuin, que foi visitar um velho que morava em uma caverna, dormia com os cervos e comia castanhas e o velho disse a ele que parasse de meditar e que parasse de pensar a respeito de koans, como Ray diz, e em vez disso fosse aprender como dormir e acordar," (...)

(págs. 99 à 105)








Frases



      "Li a vida de Jack London aos dezoito anos e, também, decidi-me tornar um aventureiro, um viajante solitário."

      "A minha falha e o meu fracasso não são as minhas paixões, mas a falta de controle sobre elas."

      "Eu só confio nas pessoas loucas, que falam demais e alto demais; que querem ser salvas; que bocejam diante do comum e que ardem, ardem, ardem, até explodirem no espaço desafiando estrelas e cometas."


      "Li e estudei sozinho a vida inteira. Estabeleci o recorde de falta às aulas da faculdade de Columbia para ficar no meu quarto escrevendo uma peça diária e lendo, digamos, Louis Ferdinand Céline, em vez dos 'clássicos' do curso."









1922-1969




S.E.





Um comentário:

Anaphylaxxya disse...

Ahhh!! Kerouac!! Dé uma passada no meu blog, postei trechos de Visões de Cody, caso não tenha lido ainda!
http://anaphylaxxya.blogspot.com/