25 de janeiro de 2009



HOMENAGEM


Carlos Castañeda






Viagem a Ixtlan



Capítulo 18




O círculo do poder do feiticeiro




      Em maio de 1971, fiz a última visita de meu aprendizado a Dom Juan. Fui procurá-lo naquela ocasião com o mesmo espírito com que o buscara durante os dez anos de nossa ligação; isto é, mais uma vez eu procurava o prazer da sua companhia.
      O amigo dele, Dom Genaro, um feiticeiro índio mazateca, estava com ele. Eu tinha estado com ambos na minha visita anterior, uns meses antes. Eu estava pensando se devia ou não perguntar se eles haviam estado juntos todo aquele tempo, quando Dom Genaro explicou que ele gostava tanto do deserto do norte que voltara justo a tempo de me ver. Os dois riram como se tivessem um segredo.
      — Voltei só por sua causa — disse Dom Genaro.
      — É verdade — confirmou Dom Juan.
      Lembrei a Dom Genaro que, da última vez que eu tinha estado lá, as tentativas dele para me ajudar a “parar o mundo” tinham sido desastrosas para mim. Era a minha maneira simpática de fazer com que ele soubesse que eu tinha medo dele. Ele riu muito, sacudindo o corpo e esperneando como criança. Dom Juan evitou olhar para mim e riu também.
      — Não vai mais tentar me ajudar, não é, Dom Genaro?
      Minha pergunta provocou ataques de riso nos dois. Dom Genaro rolava pelo chão, rindo-se, e depois deitou-se de bruços e começou a nadar no chão. Quando eu o vi fazendo aquilo, percebi que estava perdido. Naquele momento, meu corpo notou que eu tinha chegado ao fim. Não sabia que fim seria. Minha tendência pessoal para dramatizar as coisas e minha experiência anterior com Dom Genaro me levaram a crer que podia ser o fim de minha vida.
      Em minha última visita a eles, Dom Genaro tinha tentado levar-me ao ponto de “parar o mundo”. Seus esforços tinham sido tão bizarros e diretos que o próprio Dom Juan fora obrigado a me dizer para partir. As demonstrações de “poder” de Dom Genaro eram tão extraordinárias e desconcertantes que me forçavam a uma reavaliação total de mim mesmo. Fui para casa, revendo os apontamentos que eu tomara bem no princípio de meu aprendizado, e uma sensação inteiramente nova me invadiu, embora eu não tivesse plena consciência dela até ver Dom Genaro nadando no chão.
      O ato de nadar no chão, que estava de acordo com outros atos estranhos e desconcertantes que ele praticara diante de meus olhos, começava com ele deitado de bruços. A princípio, ele estava rindo tanto que seu corpo se sacudia como em convulsões; depois, começou a espernear e por fim o movimento de suas pernas coordenou-se com um movimento de remo dos braços e Dom Genaro começou a deslizar pelo chão como se estivesse deitado numa prancha com esferas de rolamento. Mudou de direção várias vezes e percorreu toda a área diante da casa de Dom Juan, manobrando em volta de mim e de Dom Juan.
      Dom Genaro já tinha feito palhaçadas na minha frente e, cada vez que ele o fazia, Dom Juan me garantia que eu estivera a ponto de “ver”. Meu fracasso em matéria de “ver” era devido a minha insistência para querer explicar todos os atos de Dom Genaro de um ponto de vista racional. Daquela vez eu estava prevenido e quando ele começou a nadar, não tentei explicar nem entender o fato. Simplesmente, fiquei olhando para ele. No entanto, não podia evitar a sensação de estar assombrado. Ele estava mesmo deslizando sobre a barriga e o peito. Meus olhos começaram a envesgar, enquanto eu olhava para ele. Tive uma onda de apreensão. Estava convencido de que, se eu não explicasse o que estava acontecendo, eu “veria”, e isso me enchia de uma ansiedade extraordinária. Minha expectativa nervosa era tão grande que, não sei como, eu estava de volta à estaca zero, novamente trancado num esforço racional.
      Dom Juan devia estar-me observando. De repente, ele me tocou; automaticamente, virei-me para ele e, por um instante, desviei os olhos de Dom Genaro. Quando tornei a olhar para ele, estava de pé a meu lado, com a cabeça ligeiramente inclinada e o queixo quase repousando em meu ombro direito. Tive uma reação de susto retardada. Olhei para ele por um segundo e depois saltei para trás.
      Sua expressão de surpresa fingida foi tão cômica que eu ri histericamente. Mas não podia deixar de sentir que meu riso era fora do comum. Meu corpo se sacudia com espasmos nervosos, que partiam do meio de minha barriga. Dom Genaro pôs a mão em minha barriga e os espasmos cessaram.
      — Esse Carlinhos é sempre tão exagerado! —exclamou ele, como se fosse um homem fiteiro. Depois acrescentou, imitando o tom de voz e as maneiras de Dom Juan: — Você não sabe que um guerreiro nunca se ri assim?
      A caricatura de Dom Juan estava tão perfeita que eu ri mais ainda.
      Depois, os dois foram embora juntos e ficaram fora por mais de duas horas, até por volta do meio-dia. Quando voltaram, sentaram-se na área diante da casa de Dom Juan. Não disseram uma palavra. Pareciam estar com sono, cansados, quase distraídos. Ficaram imóveis e relaxados. A boca de Dom Juan estava meio aberta, como se ele estivesse realmente dormindo, mas suas mãos estavam cruzadas no colo e seus polegares se moviam ritmadamente.
      Eu me remexi e mudei de posição de sentar, por algum tempo, depois comecei a sentir uma placidez calmante. Devo ter adormeido. A risada de Dom Juan me acordou. Abri os olhos. Os dois estavam olhando para mim.
      — Se você não fala, adormece — disse Dom Juan, rindo.
      — Acho que sim — concordei.
      Dom Genaro deitou-se de costas e começou a espernear. Por um momento, pensei que ele ia recomeçar suas palhaçadas perturbadoras, mas ele voltou logo a sua posição sentada, de pernas cruzadas.
      — Há uma coisa que você já deve conhecer, a essa altura — disse Dom Juan. — Eu a chamo de centímetro cúbico de oportunidade, que aparece diante de nossos olhos de vez em quando. A diferença entre um homem comum e um guerreiro é que o guerreiro sabe disso e uma de suas tarefas é estar alerta, esperando propositadamente, de modo que, quando seu centímetro cúbico aparece, ele tem a velocidade necessária e a habilidade de apanhá-lo.
      “Oportunidade, boa sorte, poder pessoal, ou como quiser chamá-lo, é um estado de coisas especial. É como um pauzinho pequenino que aparece na nossa frente e nos convida a pegá-lo. Geralmente, estamos por demais ocupados, ou preocupados, ou apenas muito burros e preguiçosos para compreender que aquele é o nosso centímero cúbico de sorte. Um guerreiro, ao contrário, está sempre alerta e ajustado, e tem o impulso, a fibra necessária para pegá-lo.”
      — Sua vida está bem ajustada? — perguntou Dom Genaro, de repente.
      — Creio que sim — respondi, com convicção.
      — Acha que pode pegar seu centímetro cúbico de sorte? — perguntou-me Dom Juan, com um tom incrédulo.
      — Acho que faço isso o tempo todo — disse eu.
      — Penso que você só é alerta nas coisas que conhece — falou Dom Juan.
      — Talvez eu me esteja iludindo, mas acredito sinceramente que hoje em dia estou mais alerta do que em qualquer outra época de minha vida — repliquei; e estava sendo sincero.
      Dom Genaro meneou a cabeça, aprovando.
      — Sim — disse ele, baixinho, como que para si mesmo, Carlinhos está mesmo ajustado, e completamente alerta.
      Achei que eles me estavam agradando. Pensei que talvez a afirmação sobre minha suposta condição de ajustamento pudesse tê-los contrariado.
      — Náo me quis prosar — falei.
      Dom Genaro ergueu as sobrancelhas e dilatou as narinas. Olhou para meu caderno e fingiu escrever.
      — Acho que Carlos está ficando cada vez maïs ajustado — disse Dom Juan a Dom Genaro.
      — Talvez esteja ajustado demais — retrucou Dom Genaro.
      — Pode muito bem estar — concedeu Dom Juan.
      Eu não sabia o que dizer a essa altura, de modo que fiquei calado.
      — Lembra—se daquela vez em que enguicei seu carro? — perguntou Dom Juan com displicência.
      A pergunta dele era abrupta e sem relação com o que estávamos falando. Referia-se a uma ocasião em que não consegui ligar meu carro, até ele dizer que o veículo estava liberado.
      Falei que ninguém poderia esquecer uma coisa daquelas.
      — Aquilo não foi nada — disse Dom Juan,num tom natural. — Nada mesmo. Não é verdade, Genaro?
      — É verdade — respondeu Dom Genaro, com indiferença.
      — O que dizer? — exclamei, em tom de protesto. — O que você fez naquele dia foi uma coisa realmente além da minha compreensão.
      — Isso não é dizer muito — retrucou Dom Genaro.
      Os dois riram às gargalhadas, e Dom Juan me deu um tapinha nas costas.
      — Genaro sabe fazer coisa muito melhor do que enguiçar seu carro — continuou. — Não é verdade, Genaro?
      — É verdade — disse Dom Genaro, franzindo os lábios como criança.
      — O que ele sabe fazer? — perguntei, procurando parecer indiferente.
      — Genaro sabe sumir com seu carro todo! — exclamou Dom Juan, numa voz de trovão; e depois acrescentou, no mesmo tom: — Não é verdade, Genaro?
      — É verdade! — respondeu Dom Genaro, no tom de voz humana mais forte que já ouvira.
      Dei um salto, sem querer. Meu corpo teve três ou quatro espasmos nervosos.
      — O que quer dizer com isso? — perguntei.
      — O que eu quis dizer, Genaro? — perguntou Dom Juan.
      — Você quis dizer que eu posso entrar no carro dele, ligar o motor e sair no carro — respondeu Dom Genaro, com uma seriedade nada convincente.
      — Leve o carro embora, Genaro — insistiu Dom Juan, num tom brincalhão.
      — Está feito! — disse Dom Genaro, franzindo a cara e olhando para mim de esguelha.
      Reparei que quando ele franzia a cara suas sobrancelhas ondulavam, tornando a expressão de seus olhos maliciosa e penetrante.
      — Está bem! concordou Dom Juan, calmamente. —
Vamos para lá examinar o carro.
      Eles se levantaram, muito devagar. Por um momento, fiquei sem saber o que fazer, mas então Dom Juan me fez sinal para me levantar.
      Começamos a subir a colina na frente da casa de Dom Juan. Os dois iam a meu lado. Dom Juan à minha direita e Dom Genaro à minha esquerda. Eles estavam talvez a uns dois metros na minha frente, sempre dentro do meu campo de visão.
      — Vamos examinar o carro — disse Dom Genaro, de novo.
      Dom Juan mexeu as mãos como se estivesse torcendo um fio irivisível; Dom Genaro fez o mesmo e repetiu: "Vamos examinar o carro." Eles caminhavam com um certo impulso. Seus passos eram mais compridos do que o normal e suas mãos se mexiam como se estivessem açoitando ou batendo em objetos invisíveis em sua frente. Eu nunca tinha visto Dom Juan fazer essas palhaçadas e estava quase encabulado de olhar para ele.
      Chegamos ao alto da colina e olhei para o lugar na base do morro, a uns 50 metros de distância, em que tinha estacionado o carro. Meu estômago contraiu-se com um empuxo. O carro não estava lá! Desci a colina correndo. Meu automóvel não estava à vista. Tive um momento de grande confusão. Estava desorientado.
      Meu carro tinha ficado estacionado ali desde que eu chegara, de manhã. Talvez uma meia hora antes, eu tinha ido até ele para pegar mais um bloco de notas. Naquele momento, eu pensara em deixar os vidros abertos, por causa do calor excessivo, mas a quantidade de mosquitos e outros insetos voadores do lugar me haviam feito mudar de idéia e eu deixara o carro trancado, como de costume.
      Tornei a olhar em volta. Recusava-me a acreditar que meu carro tivesse sumido. Andei até à borda da clareira. Dom Juan e Dom Genaro vieram para junto de mim e fizeram exatamente o mesmo que eu fazia, espiando para longe para ver se o carro estava em algum lugar. Tive um momento de euforia, que cedeu lugar a uma desconcertante sensação de aborrecimento. Pareceram notar e começaram a andar em volta de mim, mexendo as mãos como se estivessem amassando massa de pão.
      — O que acha que houve com o carro, Genaro? — perguntou Dom Juan, numa voz humilde.
      — Eu o levei embora — disse Dom Genaro, imitando perfeitamente o movimento de fazer as mudanças e dirigir. Dobrou as pernas como se estivesse sentado e ficou naquela posição por alguns momentos, obviamente mantido apenas pelos músculos das pernas; depois, passou o peso para a perna direita e esticou o pé esquerdo para imitar a ação da embreagem. Fez o ruído do motor com a boca e, por fim, para culminar tudo, fingiu estar passando por um ressalto na estrada e sacudiu-se para cima e para baixo, dando a sensação perfeita de um motorista inepto que pula sem largar a direção.
      A pantomina de Dom Genaro foi estupenda. Dom Juan riu até ficar sem fôlego. Eu queria acompanhá-los nas risadas mas não consegui relaxar. Sentia-me ameaçado e nada à vontade. Fui acometido por uma ansiedade sem precedentes em minha vida. Senti que me estava queimando por dentro e comecei a chutar umas pedrinhas do chão e acabei atirando-as com uma fúria inconsciente e imprevisível. Era como se a raiva estivesse fora de mim e, de repente, me envolvesse. Então, a sensação de aborrecimento me abandonou tão misteriosamente quanto me dominara. Respirei fundo e me senti melhor.
      Eu não ousava olhar para Dom Juan. Minha demonstração de gênio me encabulava e, ao mesmo tempo, eu queria rir. Dom Juan veio para junto de mim e me deu um tapinha nas costas. Dom Genaro pôs o braço em meu ombro.
      — Está bem! — falou Dom Genaro. — Entregue-se. Dê um soco em seu próprio nariz e deixe sangrar. Depois, pode pegar uma pedra e quebrar seus dentes. Vai ser ótimo! E se isso não ajudar, pode arrebentar seus testículos com a mesma pedra naquela rocha ali.
      Dom Juan riu. Falei a eles que estava envergonhado por ter procedido tão mal. Não sabia o que me havia atacado. Dom Juan disse que estava certo de que eu sabia exatamente do que se passava e estava fingindo que não sabia, e que era essa minha atitude que me irritava.
      Dom Genaro foi excepcionalmente tranquilizador; deu vários tapinhas em minhas costas.
      — Isso acontece com todos nós — falou Dom Juan.
      — O que quer dizer com isso, Dom Juan? — perguntou Dom Genaro, imitando minha voz, zombando de meu costume de fazer perguntas a Dom Juan.
      Este disse umas coisas absurdas, como: “Quando o mundo está de cabeça para baixo nós estamos de cabeça para cima, mas quando o mundo está de cabeça para cima, nós estamos de cabeça para baixo. Agora, quando o mundo e nós estamos de cabeça para cima, pensamos que estamos de cabeça para baixo... “ Ele continuava falando besteira, enquanto Dom Genaro me imitava tomando apontamentos. Escrevia num bloco invisível, dilatando as narinas enquanto movia a mão, conservando os olhos bem abertos e fixos em Dom Juan. Dom Genaro havia percebido meus esforços para escrever sem olhar para o bloco, para não alterar o fluxo natural da conversa. A represenação dele era realmente hilariante.
      De repente, senti-me muito à vontade e feliz. O riso deles era calmante. Por um momento, relaxei e dei uma gargalhada. Mas depois meu espírito caiu num novo estado de apreensão, confusão e aborrecimento. Pensei que o que quer que estivesse ocorrendo ali era impossível; na verdade, era inconcebível segundo a ordem lógica pela qual estou habituado a julgar o mundo ambiente. No entanto, como observador, eu percebia que meu carro não estava lá. Ocorreu-me a idéia, como acontecia sempre que Dom Juan me confrontava com fenômenos inexplicáveis, de que eu estivesse sendo logrado por meios comuns. Minha mente, sob tensão, sempre e consistentemente repetia o mesmo processo. Comecei a pensar em quantos conspiradores Dom Juan e Dom Genaro precisariam para remover meu carro de onde eu o estacionara. Tinha certeza absoluta de que havia trancado as portas e puxado o freio de mão; o carro estava engrenado, e a roda da direção, trancada. Para poder mover o carro, eles teriam de levantá-lo fisicamente. Isso obrigaria uma força de trabalhadores que, eu estava convencido, nenhum dos dois poderia ter reunido. Outra possibilidade era que alguém, mancomunado com eles, tivesse arrombado meu carro, feito uma ligação direta e o levado embora. Fazer isso exigiria uma técnica especializada que eles não possuíam. A única outra explicação possível era que talvez eles me estivessem hipnotizando. Seus movimentos eram tão novos para mim e tão suspeitos que caí num redemoinho de racionalizações. Pensei que, se me estivessem hipnotizando, então eu estava num estado de consciência alterado. Em minha experiência com Dom Juan, eu observara que, em tais estados, a pessoa é capaz de manter um registro mental constante da passagem do tempo. Nunca houvera uma ordem duradoura, em matéria de passagem de tempo, em todos os estados de realidade não comum que eu experimentara, e minha conclusão era que, se eu me mantivesse alerta, chegaria um momento em que eu perderia minha ordem de sequência de tempo. Como se, por exemplo, eu estivesse olhando para uma montanha num dado momento e depois, em meu momento de consciência seguinte, estivesse olhando para um vale na direção oposta, mas sem me lembrar de me ter virado. Achei que, se uma coisa desse tipo me acontecesse, então eu poderia explicar o que estava acontecendo com meu carro, como, talvez, sendo um caso de hipnose. Resolvi que a única coisa que eu poderia fazer era vigiar todos os detalhes com uma minúcia total.
      — Onde está meu carro? — perguntei, dirigindo-me aos dois.
      — Onde está o carro, Genaro? — perguntou Dom Juan, com uma expressão da máxima seriedade.
      Dom Genaro começou a revirar pedrinhas, procurando embaixo delas. Trabalhou febrilmente em toda a clareira plana em que eu deixara o carro. Chegou a revirar todas as pedras. Às vezes, fazia-se de zangado e atirava a pedra no mato.
      Dom Juan parecia estar-se divertindo imensamente com aquela cena. Ria e dava mostras de estar esquecido de minha presença.
      Dom Genaro tinha justamente acabado de atirar uma pedra, numa exibição de frustração fingida, quando chegou a uma pedra de bom tamanho, a única pedra grande e pesada existente no local. Tentou revirá-la, mas era muito pesada e profundamente encravada na terra. Ele bufou e lutou até estar transpirando. Então, sentou-se numa pedra e chamou Dom Juan para ajudá-lo. Este virou-se para mim com um sorriso radioso e disse:
      — Vamos dar uma mãozinha a Genaro.
      — O que ele está fazendo? — perguntei.
      — Está procurando seu carro — disse Dom Juan, num tom displicente.
      — Pelo amor de Deus! E como é que ele pode encontrá-lo debaixo das pedras? — protestei.
      — Pelo amor de Deus, por que não? — retrucou Dom Genaro, e os dois começaram a rir.
      Não conseguimos mover a pedra. Dom Juan sugeriu que fôssemos até à casa procurar um pedaço de madeira grossa para usar como alavanca.
      A caminho de casa, eu falei que os atos deles eram absurdos e que o que me estavam fazendo era desnecessário. Dom Genaro olhou bem para mim.
      — Genaro é um homem muito meticuloso — falou Dom Juan, muito sério. — E tão minucioso e meticuloso quanto você. Você mesmo disse que nunca deixa nenhuma pedra no lugar. Ele está fazendo o mesmo.
      Dom Genaro me deu um tapinha no ombro e disse que Dom Juan tinha toda razão e que, na verdade, ele queria ser igual a mim. olhou-me com um olhar desvairado e dilatou as narinas. Dom Juan bateu palmas e atirou o chapéu no chão.
      Depois de uma busca demorada na casa, atrás de um pedaço de madeira grosso, Dom Genaro encontrou uma tora comprida e bastante grossa, parte de uma viga da casa. Colocou-a sobre os ombros e voltamos para o lugar onde tinha estado meu carro.
      Quando subíamos a colina e íamos chegando a uma curva no caminho, de onde eu veria o local do estacionamento, tive uma idéia repentina. Ocorreu-me que ia encontrar meu carro antes deles, mas, quando olhei para baixo, não havia carro algum ao pé do morro.
      Dom Juan e Dom Genaro devem ter compreendido o que eu tinha em mente e correram atrás de mim, rindo às gargalhadas.
      Quando chegamos ao pé do morro, eles começaram logo a trabalhar. Fiquei olhando para eles por alguns momentos. Seus atos eram incompreensíveis. Não estavam fingindo que trabalhavam, estavam realmente absortos na tarefa de virar uma rocha para ver se meu carro estava lá embaixo. Aquilo foi demais para mim, e juntei meus esforços aos deles. Bufavam e gritavam, e Dom Genaro uivava que nem um coiote. Estavam encharcados de suor. Notei como os corpos deles eram fortes, especialmente o de Dom Juan. Perto deles eu era um rapaz flácido.
      Logo comecei a transpirar abundantemente. Por fim, conseguimos virar a pedra e Dom Genaro examinou a terra embaixo da rocha com uma paciência e meticulosidade enlouquecedoras.
      — Não. Não está aqui — declarou ele.
Aquelas palavras fizeram os dois caírem por terra, de tanto rir. Eu tive um fluxo de riso nervoso. Dom Juan parecia estar tendo verdadeiros espasmos de dor e cobriu o rosto e deitou-se, enquanto seu corpo se sacudia.
      — Em que direção vamos agora? — perguntou Dom Genaro, depois de um longo repouso.
      Dom Juan apontou com a cabeça.
      — Para onde vamos? — perguntei.
      — Procurar seu carro! — disse Dom Juan, sem o menor sorriso.
      Novamente eles se postaram um de cada lado de mim, enquanto entrávamos no mato. Só tínhamos percorrido alguns metros quando Dom Genaro nos fez sinal para parar. Ele foi na ponta dos pés até um arbusto próximo, olhou dentro dos galhos e disse que o carro não estava ali.
      Continuamos a andar e então Dom Genaro fez sinal com a mão para ficarmos quietos. Arqueou as costas, nas pontas dos pés, e estendeu os braços por cima da cabeça. Seus dedos estavam contraídos como garras. De onde eu estava, o corpo de Dom Genaro tinha a forma de uma letra S. Conservou a posição por um instante e depois praticamente mergulhou de cabeça sobre um galho comprido com folhas secas. Ergueu-o com cuidado, examinou-o e declarou novamente que o carro não estava lá.
      Quando entramos no chaparral profundo, Dom Genaro olhou atrás dos arbustos e trepou em árvores para procurar em suas folhagens, só para chegar à conclusão de que o carro também não estava lá.
      Enquanto isso, eu fazia um registro mental meticuloso de tudo quanto tocava ou via. Minha visão contínua e ordeira do mundo em volta de mim era tão natural quanto sempre fora. Eu tocava nas pedras, arbustos e árvores. Passava minha vista do primeiro plano para os fundos, olhando por um olho e depois por outro. Por todos os cálculos, eu estava caminhando no chaparral como já fizera dezenas de vezes em minha vida comum.
      Depois, Dom Genaro deitou-se de bruços e nos pediu para fazer o mesmo. Descansou o queixo em suas mãos cruzadas. Dom Juan imitou-o. Ambos ficaram olhando para uma série de pequenas protuberâncias no chão, que pareciam morrinhos. De repente, Dom Genaro fez um movimento de varrer com a mão direita e agarrou alguma coisa. Levantou-se depressa e Dom Juan também. Dom Genaro ergueu a mão fechada defronte de nós e fez sinal para nos aproximarmos para espiar. Então, devagar, começou a abrir a mão. Quando ela estava meio aberta, um objeto preto, grande, voou dali. O movimento foi tão repentino e o objeto voador tão grande que dei um salto para trás, quase perdendo o equilíbrio. Dom Juan me segurou.
      — Aquilo não era o carro — queixou-se Dom Genaro. — Era um raio de uma mosca. Desculpe!
Os dois me examinaram. Estavam de pé diante de mim e não me olhavam diretamente, e sim pelos cantos dos olhos. Foi um olhar prolongado.
      — Era uma mosca, não era? — perguntou-me Dom Genaro.
      — Penso que sim — respondi.
      — Não pense — ordenou Dom Juan, imperiosamente. —O que foi que você viu?
      — Vi uma coisa grande como um corvo voando da mão dele — disse eu.
      Minha declaração estava de acordo com o que eu havia percebido e eu não tinha a intenção de fazer piada, mas eles a consideraram talvez como a frase mais hilariante que alguém tivesse pronunciado naquele dia. Ambos pularam e riram tanto que se engasgaram.
      — Acho que Carlos já sofreu bastante — disse Dom Juan. A voz dele estava rouca de tanto rir.
      Dom Genaro afirmou que já ia encontrar meu carro, que a sensação estava ficando cada vez mais quente. Dom Juan disse que estávamos num lugar agreste e que encontrar um carro ali não era uma coisa fácil. Dom Genaro tirou o chapéu e arrumou a tira com um pedaço de cordão que tirou da sacola e depois amarrou seu cinto de lã a um pompom amarelo preso na aba do chapéu.
      — Estou fazendo um papagaio do meu chapéu — disse ele para mim.
      Olhei para ele e vi que estava brincando. Sempre me considerara perito em papagaios. Quando era criança, fazia os papagaios mais complicados e eu sabia que a aba do chapéu de palha era muito frágil para resistir ao vento. Por outro lado, a copa do chapéu era funda demais e o vento circularia dentro dela, tornando impossível levantar o chapéu do chão.
      — Você acha que ele não vai voar, não é? — perguntou-me Dom Juan.
      — Sei que não vai — respondi.
      Dom Genaro não se importou e acabou de prender um barbante comprido a seu papagaio-chapéu.
      Era um dia ventoso e Dom Genaro correu morro abaixo enquanto Dom Juan segurava o chapéu, e depois Dom Genaro puxou o cordão e o raio da coisa chegou a voar.
      — Olhe, olhe para o papagaio! — gritou Dom Genaro.
      Ele se sacudiu umas vezes, mas ficou no ar.
      — Não tire os olhos do papagaio — disse Dom Juan, com firmeza.
      Por um momento, fiquei tonto. Olhando para o papagaio, eu tinha tido uma recordação completa de outra ocasião; era como se eu mesmo estivese empinando o papagaio, como costumava fazer, quando ventava nos morros de minha cidade natal. Por um momento, a recordação me dominou e perdi minha consciência da passagem do tempo.
      Ouvi Dom Genaro gritando alguma coisa e vi o chapéu pulando para cima e para baixo e depois caindo ao chão, onde estava meu carro. Tudo se passou em tal velocidade que não tive uma idéia clara do que aconteceu. Fiquei tonto e distraído. Minha mente se apegava a uma imagem muito confusa. Ou eu via o chapéu de Dom Gienaro se transformando em meu carro, ou eu via o chapéu caindo por cima do carro. Eu queria acreditar nesta última versão, que Dom Genaro tivesse usado o chapéu para apontar meu carro. Não que hso importasse, pois ambas as coisas eram igualmente assombrosas, mas, assim mesmo, minha mente agarrou-se àquele detalhe arbitrário a fim de conservar meu equilíbrio mental originário.
      — Não lute contra isso — ouvi Dom Juan dizendo.
      Senti que alguma coisa dentro de mim ia emergir. Pensamentos e imagens vinham em ondas incontroláveis, como se eu estivesse adormecendo. Fiquei olhando para o carro, boquiaberto. Estava ali, parado num lugar plano e pedregoso, a uns cem metros de distância. Corri para ele e comecei a examiná-lo.
      — Que diabos! — exclamou Dom Juan. — Não fique olhando para o carro. Pare o mundo!
      Então, como num sonho, eu o ouvi gritando:
      — O chapéu de Genaro! O chapéu de Genaro!
      Olhei para eles. Estavam voltados diretamente para mim. Seus olhares eram penetrantes. Senti um peso no estômago. Tive uma dor de cabeça instantânea e enjoei.
      Dom Juan e Dom Genaro olharam para mim com curiosidade. Sentei-me junto do carro um pouco e depois, automaticamente, destranquei a porta e deixei Dom Genaro entrar no assento de trás. Dom Juan acompanhou-o e sentou-se ao lado dele. Achei aquilo estranho, pois ele geralmente se sentava na frente.
      Dirigi o carro até à casa de Dom Juan numa espécie de névoa. Não me sentia em meu normal. Meu estômago estava muito embrulhado e a sensação de náusea destruía toda a minha sobriedade. Eu dirigia mecanicamente.       Ouvi Dom Juan e Dom Genaro no assento de trás dando risadas como criancinhas. Dom Juan me perguntou:
      — Estamos chegando mais perto?
      Foi naquele ponto que reparei na estrada. Estávamos realmente bem perto da casa dele.
      — Já estamos chegando — murmurei.
      Os dois riram às gargalhadas. Bateram palmas e deram palmadas em suas coxas.
      Quando chegamos em casa, automaticamente saltei do carro e abri a porta para eles. Dom Genaro saltou primeiro e me deu os parabéns pelo que ele chamou de viagem mais agradável e suave que teve na vida. Dom Juan disse o mesmo. Não lhes dei muita atenção.
      Tranquei o carro e mal pude chegar até à casa. Antes de adormecer, reparei que ambos riam muito.













Extraído do livro:
Viagem a Ixtlan
Carlos Castañeda - 1925/1998 -


















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