12 de dezembro de 2008



HOMENAGEM

Fiódor Mikhailovich Dostoiévski



O Pai do Existencialismo




     Vagarosamente se ampliou o círculo de minhas relações, embora eu não as procurasse, já que minha índole era tristonha e reservada. Os meus conhecidos, se os tive, foi porque eles próprios se foram apresentando. Um dos primeiros foi Petrov. Devo dizer e insistir que se tratou (e que se tratava) de visita. Petrov fazia parte da seção especial e vivia numa caserna bem afastada da nossa. Creio que tal relação não teve lógica inicial de espécie alguma. Tampouco decorreu de qualquer interesse praticamente viável. Fosse por que fosse, Petrov achou do seu dever realizar as visitas ou então vir ao meu encontro quando eu de tarde, após o trabalho, me punha a passear atrás dos alojamentos, quase sempre sozinho. No começo, não gostei muito; ele, porém, tanto fez que acabei por me habituar, distraindo-me até, embora fosse paradoxalmente maçante. De compleição meã, mas forte e ágil, tinha um rosto lívido mas não desagradável, de malares salientes, olhar vivaz, dentes em serra, mascando eternamente entre a gengiva e o beiço inferior um chumaço de fumo, vício aliás de muitos dos detentos. Parecia ter menos idade do que a verdadeira, aparentando trinta, embora já tivesse quarenta. Falava comigo sem cerimônia alguma, de igual para igual, imitando talvez a minha delicadeza e atenção. Assim que percebia que eu queria ficar sozinho, me deixava em menos de dois minutos, com ar grato por eu aturá-lo, o que já não fazia com os demais detentos. O interessante é que nossa relação se manteve pelo espaço de diversos anos sem descambar para a intimidade, conquanto Petrov demonstrasse me querer bem. Mesmo hoje não saberei dizer o que em mim o atraía e qual a razão de suas visitas diárias. Seria por que conseguia me furtar coisas? Não posso responder que esse fosse o motivo fundamental; dinheiro jamais me pediu, nem mesmo emprestado; logo, devia me procurar sem ser por interesse propriamente material.
     Não saberei explicar por que, mas a impressão que eu tinha era, quando ele me aparecia, que não vinha de nenhuma parte do presídio e sim de fora, da cidade, por exemplo, ali vindo assim como trazido pela curiosidade, para saber como eu estava passando, que era que havia acontecido, fazer perguntas eventuais, etc. Vinha sempre com ar apressado, como se tivesse deixado em meio alguma ocupação, se do lado de fora permanecesse alguém à sua espera ou como se tivesse alguma empreitada a completar. Mas ainda assim demorava. Também seu feitio de olhar era esquisito, agudo, esperto, de uma afabilidade sagaz. Olhava para as coisas começando a fixá-las já de longe, como querendo transpassá-las até ao âmago. Isso lhe dava uma expressão vaga. Não raro eu me perguntava, absorto, onde iria Petrov ao me deixar; esperá-lo-ia alguém, alhures? Onde? Para quê? A verdade, porém, é que, uma vez se despedindo de mim, se dirigia apressado para uma das casernas ou para uma das cozinhas, parava perto de um grupo que estava conversando, ouvia com atenção, entrava no assunto também, às vezes mesmo com açodamento, daí a pouco estando de novo a escutar, calado e imóvel. Mas, quer tomasse parte na conversa, quer apenas escutasse, o ar era sempre de pressa, como se tivesse que ir a algum lugar, como se alguém o esperasse. O mais singular é que não fazia absolutamente nada, vivendo sempre desocupado (excetuando, é claro, o trabalho regulamentar), não sabendo nenhum ofício, não dispondo nunca de dinheiro, fato que também não o afligia.
     E a que respeito conversava ele então comigo? Sua conversa era tão singular quanto ele próprio. Notava por exemplo que eu estava sozinho atrás dos alojamentos; virava de repente, acelerava os passos na minha direção. Seus passos eram largos, suas meias-voltas instantâneas. Ao se aproximar com aquele seu feitio, dava sempre a impressão de que chegara correndo.
     —  Bom-dia.
     —  Bom-dia.
     —  Não o incomodo?
     —  Absolutamente.
     —  Queria lhe fazer uma pergunta sobre Napoleão III. Trata-se por acaso de um parente daquele outro de 1812? (Petrov, antigo soldado, sabia ler e escrever.)
     —  Sobrinho.
     —  Mas só o tratam por... presidente!?
     Perguntava sempre depressa e com avidez, como se quisesse logo esclarecer uma divida, cuja persistência o atanazasse.
     Explicava-lhe eu como Napoleão III chegara a presidente e acrescentava que decerto ainda viria a ser imperador, como o tio.
     —  Como assim?
     Esclarecia-lhe as razões dessa possibilidade. Petrov escutava com muita atenção, entendia perfeitamente tudo com vivacidade, não raro inclinando a cabeça de lado para ouvir bem.
     — Ahn!... Outra coisa. Ainda outra pergunta, Alexandr Petrovitch: é verdade que existem macacos com mãos que vêm até o chão e do tamanho dum homem?
     — Existem, sim.
     — Que macacos são esses?
     Dava-lhe conforme podia a informação pedida.
     — E onde vivem?
     — Nas regiões tropicais. Na ilha Sumatra, por exemplo, existem bandos.
     — Isso é na América ou onde? É verdade o que dizem que as pessoas na América andam com a cabeça para baixo?
     — Como, de cabeça para baixo?! Ah! Você quer se referir que são antípodas?...
     Explicava-lhe a situação geográfica da América, expunha-lhe o que vinham a ser os antípodas. Escutava muito sério, como se tivesse vindo para saber que raio de gente era essa chamada antípoda.
     — Ah! Agora compreendi! Outra coisa. No ano passado um livro sobre a Condessa La Valiière. Arefiev trouxe esse livro, que o secretário lhe emprestou. O que o livro diz aconteceu mesmo ou é coisa imaginada? É um livro de Dumas.
     —  Naturalmente é imaginação.
     —  Então muito obrigado, passe bem.
     E Petrov esgueirava-se. Neste gênero eram as conversas que tínhamos.
     Tomei informações sobre ele. M, percebendo que ele
me procurava, me fez advertências. Disse-me que se detentos havia ali que desde o primeiro dia o haviam atemorizado, nenhum, nem mesmo Gazin, exercera impressão tão tenebrosa quanto Petrov.
     —  É o homem mais perigoso e mais ousado de todo o presídio, — disse-me M. —  É capaz de tudo, nada o detém uma vez tendo deliberado cometer qualquer coisa consoante os seus instintos. Degolaria até mesmo você, se tal vontade lhe viesse. Assim!. . . Cortar-lhe-ia a garganta, sem vacilação no ato, nem remorso depois. Acho até que não regula certo.
     Essa declaração interessou-me extraordinariamente, mas M não conseguiu me explicar direito por que tinha aquela persuasão. E formidável é o seguinte: mantive relações com Petrov durante anos seguidos, conversando com ele quase diariamente; percebia bem que de fato tinha afeição por mim (embora nunca tenha em absoluto adivinhado por que), e durante todo esse tempo sempre se comportou direito, sem cometer nenhuma barbaridade. Ainda assim, quando conversava com ele e o via na minha frente, me convencia de que M tinha razão e que Petrov talvez fosse mesmo um homem temível, que nenhum freio domasse. Por que achava isso, eu também não sei explicar.


(...)

     Traziam, por exemplo, o réu a ser castigado. Smekalov comparecia ao local, pondo-se a conversar, a gracejar; interrogava o setenciado a esmo sobre sua vida, seus trabalhos, seus negócios. Não com qualquer intenção, não por crueldade a exercer, e sim por naturalidade, ao acaso, porque de fato "tinha esse jeito de querer saber da vida da gente". Traziam varas e uma cadeira para Smekalov. Sentava-se, tirava e acendia um cachimbo. Usava um enorme cachimbo. O delinqüente aproveitava para solicitar piedade.
     — Deixa de histórias, irmão. Trata de ficar em posição; não é hora de conversa — dizia-lhe Smekalov. O forçado obedecia, com um suspiro. — Agora, amigo, ouve cá: sabes ou não sabes orar? Seja lá o que for, de cor.
     — Pois então, exelência, não hei de saber? Aprendi a rezar desde pequenino.
     — Então, sentido, prepara-te!
     E o forçado sabe muito bem o que tem que rezar e o que acontecerá a seguir, pois essa lenga-lenga já aconteceu com outros mais de trinta vezes. O próprio Smekalov sabe, ora se sabe! E ele mais o detento sabem que os soldados também sabem, tanto que estão em fila diante da vítima com as varas levantadas. Nada disso impede que a coisa se repita pela trigésima primeira vez , o próprio autor gostando do sistema. O forçado começa a recitar os vocativos da oração, os soldados esperam, preparados com as varas, Smekalov está sentado, a mão soerguida, esquecido até de fumar o cachimbo, aguardando apenas o final de uma certa frase. Bem nas primeiras frases da oração tão conhecida, vem a palavra "o vosso reino".
     Era o quanto bastava.
     — Alto — brada ele, como explodindo e, como inspirado, se volta para o primeiro soldado que está em posição com a vara no ar e exclama: "De mansinho com ele para o reino da glória!"
     E ri estrepitosamente. Os soldados riem, o fustigador ri, a própria vítima ri, muito embora ante as palavras "de mansinho com ele para o reino da glória" a vara já esteja zunindo no ar e numa fração de segundo raspe como uma navalha o corpo do culpado. Smekalov está contente por a coisa se passar segundo todos os protocolos e por causa da tirada "de mansinho com ele para o reino da glória!". E abandona o local do castigo. O próprio forçado fica satisfeito consigo e com Smekalov e, uma meia hora depois, no presídio, conta como pela trigésima primeira vez a célebre piada surtiu efeito. Em suma: "Que alma esse homem tem! É mesmo formidável!"

(...)


     Durante algum tempo morou entre nós uma águia, aliás, um filhote da família das que vivem nas estepes e que são de porte reduzido. Alguém a achou machucada e a trouxe para o presídio. Todos a rodearam; não podia voar, arrastava a asa direita e mancava, com uma perna quebrada. Lembro-me ainda com que raiva ela nos olhava e como escancarava o bico disposta a vender caro a sua vida. Quando os detentos se aproximaram mais para ver direito o que tinha, ela se locomoveu, ora sobre a perna boa ora abrindo a asa esquerda, indo se acoitar mim canto longínquo do presídio onde começou a forçar passagem entre as estacas da paliçada, até que se aquietou. Lá se ficou cerca duns três meses, sem se atrever a sair. No comêço iam vê-la frequentemente e atiçavam contra ela os cães. Charik ladrava furioso mas ressabiado, fato que divertia os assisteutes. “Não passa dum animal, mas não é nada tolo!” Por fim o próprio Charik acabou por não temer mais a águia, mordiscando-lhe a asa quebrada e logo recuando; a ave se defendia energicamente, procurando bicá-lo; indômita e garbosa como uma soberana, encarava lá do seu canto os curiosos que se aproximavam para espiá-la. Cansaram-se dela, deixaram-na sossegada. Todavia sempre havia quem lhe pusesse perto, diàriamente, um pedaço de carne e uma lata com água; quem se daria a esse cuidado? No começo recusou e durante dias não comeu, mas terminou a birra; alimentava-se, mas só quando se via sozinha. Das mãos de gente então não aceitava mesmo nada. Muitas vezes a observei duma certa distância. Cuidando-se só deixava então o seu canto, arrastava-se alguns metros da paliçada, voltava, repetia o passeio, como se se estivesse exercitando. Assim que dava comigo tratava de, pulando e esvoaçando como podia, voltar para o seu canto, voltava a cabeça, abria o bico e ficava preparada para investir. Todos os ensaios e festas foram inúteis; debatia-se, queria avançar, bicar, recusava-se a apanhar a carne oferecida e me olhava com raiva. Isolada e rancorosa, esperava a morte, sem se habituar nem acamaradar com ninguém. Afinal os detentos, dois meses depois, quando menos se esperava, começariam a ficar com pena dela. Achavam que deviam tentar obrigá-la a ir embora. “Se é que tem que morrer mesmo, que não seja aqui numa prisão.”
     — Isso mesmo; a águia é uma ave livre, nobre! Jamais se acostumará a uma vida presa, — observou alguém.
     — É como nós, — retrucou um outro.
     — Que estás para aí a grasnar? A águia é uma ave e nós Somos homens.
     — A águia, irmãos, é a rainha das florestas... — começou Skutarov; mas ninguém lhe deu ouvidos.
     Uma tarde, depois que o tambor rufou chamando para o trabalho, os detentos foram ao canto da águia, seguraram-na, apertando-lhe o bico, pois começara a querer atacá-los, e a levaram para fora do presídio. Pararam diante da muralha. A turma, constituída por uns doze homens, estava curiosissima para ver se a águia voaria. Coisa estranha: era como se cada qual fôsse recuperar a sua liberdade.
     — Arre, que bicho mais selvagem! A gente a lhe querer fazer bem e ela a querer bicar!” — dizia o detento que a segurava; e olhava com simpatia para a ave.
     — Solta-a, Mikitka!
     — Nem o diabo a puxa para o fundo do fôsso. Vejam como quer ser livre! Como palpita!
     Lá da muralha a soltaram por sôbre a estepe. Era pleno outono, num dia opaco e frio. O vento varria a frígida estepe, sibilando através da charneca e vergando as sarças. A águia obedeceu ao impulso, abriu logo as asas, derreando um pouco a machucada, como se o seu único desejo fôsse se afastar o mais possível.
     — Que bicho! — disse um detento, com ar pensativo.
     — Nnunca se deixou vencer!
     —Não se virou para tras uma única vez. Que velocidade!
     — O que ela quer é a liberdade! Está sentindo o cheiro da amplidão.
     — É sim...
     — Sumiu, rapazes!
     — Que é que estão parados aí? Marchem! — bradaram os soldados da escolta; e a turma, calada, lá se foi para os trabalhos.



Trechos do livro:
Memórias da Casa dos Mortos
Fiódor Mikhailovich Dostoiévski - 1821/1881 -










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