27 de agosto de 2009



HOMENAGEM


Alexandre Herculano








O Romântico Historiador





III

O POETA





Nenhum de vós ouse reprovar os hinos compostos em louvor de Deus.
Concílio de Toledo IV, Cân. 13.



       Muitas vêzes, pela tarde, quando o sol, transpondo a baía de Cartéia, descia afogueado para a banda de Melária, doirando com os últimos esplendores os cimos da montanha piramidal do Calpe, via-se ao longo da praia vestido com a flutuante estringe o presbítero Eurico, encaminhando-se para os alcantis aprumados à beira-mar. Os pastôres que o encontravam, voltando ao povoado, diziam que, ao passarem por êle e ao saudarem-no, nem sequer os escutava, que dos seus lábios semi-abertos e trêmulos rompia um sussurro de palavras inarticuladas, semelhante ao ciciar da aragem pelas ramas da selva. Os que lhe espreitavam os passos, nestes largos passeios da tarde, viam-no chegar às raízes do Calpe, trepar aos precipícios, sumir-se entre os rochedos e aparecer, por fim, lá ao longe, imóvel sôbre algum píncaro requeimado pelos sóis do estio e puído pelas tempestades do inverno. Ao lusco-fusco, as amplas pregas da estringe de Eurico, branquejando movediças à mercê do vento, eram o sinal de que êle estava lá; e, quando a lua subia às alturas do céu, êsse alvejar de roupas trêmulas durava, quase sempre, até que o planêta da saudade se atufava nas águas do Estreito. Daí a poucas horas, os habitantes de Cartéia que se erguiam para os seus trabalhos rurais antes do alvorecer, olhando para o presbitério, viam, através dos vidros corados da solitária morada de Eurico, a luz da lâmpada noturna que esmorecia, desvanecendo-se na claridade matutina. Cada qual tecia então sua novela ajudado pelas crenças da superstição popular: artes criminosas, trato com o espírito mau, penitência de uma abominável vida passada, e, até, a loucura, tudo serviu sucessivamente para explicar o proceder misterioso do presbítero. O povo rude de Cartéia não podia entender esta vida de exceção, porque não percebia que a inteligência do poeta precisa de viver num mundo mais amplo do que êsse a que a sociedade traçou tão mesquinhos limites.
       Mas Eurico era como um anjo tutelar dos amargurados. Nunca a sua mão benéfica deixou de estender-se para o lugar onde a aflição se assentava; nunca os seus olhos recusaram lágrimas que se misturassem com lágrimas de alheias desventuras. Servo ou homem livre, liberto ou patrono, para êle todos eram filhos. Tôdas as condições se nivelavam onde êle aparecia; porque, pai comum daqueles que a Providência lhe confiara, todos para êle eram irmãos. Sacerdote do Cristo, ensinando pelas largas horas de íntima agonia, esmagado o seu coração pela soberba dos homens, Eurico percebera, enfim, claramente, que o Cristianismo se resume em uma palavra — fraternidade. Sabia que o Evangelho é um protesto, ditado por Deus para os séculos, contra as vãs distinções que a fôrça e o orgulho radicaram neste mundo de lôdo, de opressão e de sangue; sabia que a única nobreza é a dos corações e dos entendimentos que buscam erguer-se para as alturas do céu, mas que essa superioridade real é exteriormente humilde e singela.
       Pouco a pouco, a severidade dos costumes do pastor de Cartéia e a sua beneficência, tão meiga, tão despida das insolências que costumam acompanhar e encher de amargor para os miseráveis a piedade hipócrita dos felizes da terra; essa beneficência que a religião chamou caridade, porque a linguagem dos homens não tinha palavra que exprimisse rigorosamente um afeto revelado à terra pela vítima do Calvário; essa beneficência que a gratidão geral recompensava com amor sincero tinha desvanecido gradualmente as suspeitas odiosas que o proceder extraordinário do presbítero suscitara a princípio. Enfim, certo domingo em que, tendo aberto as portas do templo e havendo já o salmista entoado os cânticos matutinos, o ostiário buscava cuidadoso o sacerdote, que parecia ter-se esquecido da hora em que devia sacrificar a hóstia do Cordeiro e abençoar o povo, foi encontrá-lo adormecido junto à sua lâmpada ainda acesa e com o braço firniado sôbre um pergaminho coberto de linhas desiguais. Antes de despertar Eurico, o ostiário correu com os olhos a parte da escritura que o braço do presbítero não encobria. Era um nôvo hino no gênero daqueles que Isidoro, o célebre Bispo de Híspalis, introduzira nas solenidades da Igreja goda. Então o ostiário entendeu o mistério da vida errante do pastor de Cartéia e as suas vigílias noturnas. Não tardou em espalhar-se na povoação e nos lugares circunvizinhos que Eurico era o autor de alguns cânticos religiosos transcritos nos hinários de várias dioceses, e uma parte dos quais brevemente foi admitida na própria Catedral de Híspalis. O caráter de poeta tornou-o ainda mais respeitável. A poesia dedicada quase exclusivamente entre os Visigodos às solenidades da igreja, santificava a arte e aumentava a veneração pública para quem a exercitava. O nome do presbítero começou a soar por tôda a Espanha como o de um sucessor de Dracônio, de Merobaude e de Orêncio.



IV

RECORDAÇÕES





Onde é que se escondeu enfraquecida a antiga fortaleza?
Sto. Eulógio
     Memorial dos Sani., L. 3°.




Presbitério de Cartéia. À meia-noite
dos idos de dezembro da era de 748.



1


       Era por uma destas noites vagarosas do inverno em que o brilho do céu sem lua é vivo e trêmulo; em que o gemer das selvas é profundo e longo; em que a soledade das praias e ribas fragosas do oceano é absoluta e tétrica.
       Era a hora em que o homem está recolhido nas suas mesquinhas moradas; em que pelos cemitérios o orvalho se pendura do tôpo das cruzes e, sozinho, goteja das bordas das campas, em que só ele chora os mortos. As larvas da imaginação e o gear noturno afastam do campo-santo a saudade da viúva e do órfão, a desesperação da amante, o coração despedaçado do amigo. Para se consolarem, os infelizes dormiam tranqüilos nos seus leitos macios!... enquanto os vermes iam roendo esses cadáveres amarrados pelos grilhões da morte. Hipócritas dos afetos humanos, o sono enxugou-lhes as lágrimas!
       E depois, as lousas eram já tão frias! Nos seios do torrão úmido o sudário do cadáver tinha apodrecido com ele.
       Haverá paz no túmulo? Deus sabe o destino de cada homem. Para o que aí repousa sei eu que há na terra o esquecimento!
       Os mares pareciam naquela hora recordar-se ainda do rugido harmonioso do estio, e a vaga arqueava-se, rolava e, espreguiçando-se pela praia, refletia a espaços nas golfadas de escuma a luz indecisa dos céus.
       E o animal que ri e chora, o rei da criação, a imagem da divindade, onde é que se escondera?
       Tremia de frio em aposento cerrado, e sentia confrangido a brisa fresca do norte que passava nas trevas e sibilava contente nas sarças rasteiras dos maninhos desertos.
       Sem dúvida, o homem é forte e a mais excelente obra da criação. Glória ao rei da natureza que tiritando geme!
       Orgulho humano, qual és tu mais — feroz, estúpido ou ridículo?


2


       Não eram assim os Gôdos do oeste 20 quando, ora arrastando por terra as águias romanas, ora segurando com o seu braço de ferro o império que desabava, imperavam na Itália, nas Gálias e nas Espanhas, moleradores e árbitros entre o Setentrião e o Meio-Dia:
       Não eram assim, quando o velho Teodorico, semelhante ao urso feroz da montanha, combatia nos campos cataláunicos  rodeado de três filhos, contra o terrível Átila  e ganhava no seu último dia a sua última vitória:
       Quando a larga e curta espada de dois gurpes se convertera em foice da morte nas mãos dos Gôdos, e diante dela retrocedia a cavalaria, dos Gépidas, e os esquadrões dos Hunos vacilavam, dando roucos gritos de espanto e terror.
       Quando as trevas eram mais, cerradas e profundas viam-se à claridade das estrêlas relampaguear as armas dos Hunos, volteando em redor dos seus carros, que lhes serviam de valos. Como o caçador espreita o leão tomado no fojo, os Visigodos os vigiavam esperando o romper da alvorada.
       Lá, o sôpro gelado da noite não fazia confranger nossos avós debaixo das armaduras. Lá, a neve era um leito como outro qualquer, e o rugir do bosque, debatendo-se nas asas da tempestade, era uma cantilena de repouso.
       O velho Teodorico caíra atravessado por uma flecha despedida pelo ostrogodo Handags, que, com os da sua tribo, combatia pelos Hunos.
       Os Visigodos viram-no, passaram avante e vingaram-no. Ao pôr do sol, Gépidas, Ostrogodos, Giros, Burgundos, Turíngios, Hunos, misturados uns com outros, tinham mordido a terra cataláunica, e os restos da inumerável hoste de Átila, encerrados no seu acampamento fortificado, preparavam-se para morrer; porque Teodorico jazia para sempre, e o franquisque dos Visigodos era vingador e inexorável.
       O romano Ácio teve, porém, piedade de Átila e disse aos filhos de Teodorico: — ide-vos, porque o império está salvo.
       E Torismundo, o mais velho, perguntou a seus dois irmãos Teodorico e Frederico: — está acaso vingado o sangue do nosso pai?
       De sobejo o estava êle! Ao aparecer do dia, por quanto os olhos podiam alcançar, não se viam senão cadáveres.
       E os Visigodos deixaram entregues a si os romanos, que, desde então, não souberam senão fugir diante de Átila.
       Quem contará, porém, as vitórias de nossos avós durante três séculos de glória? Quem poderá celebrar o esfôrço de Eurico, de Teudes, Leovigildo; quem saberá tôdas as virtudes de Recaredo e de Vamba?
       Mas, em qual coração resta hoje virtude e esfôrço, no vasto império de Espanha?


3


       [Monólogo Interior]  — Era, pois, numa destas noites como a que desceu do céu depois do desbarato dos Hunos; era numa destas noites em que a terra, envôlta no seu manto de escuridade, se povoa de terrores incertos; em que o sussurro do pinhal é como um côro de finados, o despenho da torrente como um ameaçar de assassino, o grito da ave noturna como uma blasfêmia do que não crê em Deus.
       Nessa noite fria e úmida, arrastado por agonia íntima, vagava eu às horas mortas pelos alcantis escalvados das ribas do mar, e enxergava ao longe o vulto negro das águas balouçando-se no abismo que o Senhor lhes deu para perpétua morada.
       Por cima da minha cabeça passava o norte agudo. Eu amo o sôpro do vento, como o rugido do mar:
       Porque o vento e o oceano são as duas únicas expressões sublimes do verbo de Deus, escritas na face da terra quando ainda ela se chamava o caos.
       Depois é que surgiu o homem e a podridão, a árvore e o verme, a bonina, e o emurchecer.
       E o vento e o mar viram nascer o gênero humano, crescer a selva, florescer a primavera; — e passaram, e sorriram-se.
       E, depois, viram as gerações reclinadas nos campos do sepulcro, as árvores derribadas no fundo dos vales, sêcas e carcomidas, as flôres pendidas e murchas pelos raios do sol do estio;
— e passaram, e sorriram-se.
       Que tinham êles, de feito, com essas existências, mais passageiras e incertas que as correntezas de um e que as ondas buliçosas do outro?


4


       O mundo atual nunca poderá entender plenamente o afeto que, vibrando-me dolorosamente as fibras do coração, me arrastava para as solidões marinhas do promontório, quando os outros homens nos povoados se apinhavam à roda do lar aceso e falavam das suas mágoas infantis e dos seus contentamentos de um instante.
       E que me importa a mim isso? Virão um dia a esta nobre terra de Espanha gerações que compreendam as palavras do presbítero.
       Arrastava-me para o êrmo um sentimento íntimo, o sentimento de haver acordado, vivo ainda, dêste sonho febril chamado vida, e de que hoje ninguém acorda, senão depois de morrer.
       Sabeis o que é êsse despertar de poeta?
       É o ter entrado na existência com um coração que trasborda de amor sincero e puro por tudo quanto o rodeia, e ajuntarem-se os homens e lançarem-lhe dentro do seu vaso de inocência lôdo, fel e peçonha e, depois, rirem-se dêle:
       É o ter dado às palavras — virtude, amor, pátria e glória — uma significação profunda e, depois de haver buscado por anos a realidade delas neste mundo, só encontrar aí hipocrisia, egoísmo e infâmia:
       É o perceber à custa de amarguras que o existir é padecer, o pensar descrer, o experimentar desenganar-se, e a esperança nas coisas da terra uma cruel mentira de nossos desejos, um fumo tênue que ondeia em horizonte aquém do qual está assentada a sepultura.
       Este é o acordar do poeta. Depois disso, nos abismos da sua alma só há para mandar aos lábios um sorriso de desprêzo em resposta às palavras mentidas dos que o cercam, ou uma voz de maldição desabridamente sincera para julgar as ações dos homens.
       É então que para êle há cinicamente uma vida real — a íntima; cinicamente uma linguagem inteligível — a do bramido do mar e do rugido dos ventos; i’rnicamente uma convivência não travada de perfídia — a da solidão.


5


       Tal era eu quando me assentei sôbre as fragas; e a minha alma via passar diante de si esta geração vaidosa e má, que se crê grande e forte, porque sem horror derrama em lutas civis o sangue de seus irmãos.
       E o meu espírito atirava-se para as trevas do passado.
       E o sôpro rijo do norte afagava-me a fronte requeimada pela amargura, e a memória consolava-me das dissoluções presentes com a aspiração suave do formoso e enérgico viver de outrora.
       E o meu meditar era profundo, como o céu, que se arqueia imóvel sôbre nossas cabeças; como o oceano, que, firmando-se em pé no seu leito insondável, braceja pelas baías e enseadas, tentando esboroar e desfazer os continentes.
       E eu pude, enfim, chorar.


6


       Que fôra a vida se nela não houvera lágrimas?
       O Senhor estende o seu braço pesado de maldições sôbre um povo criminoso; o pai que perdoara mil vêzes converte-se em juiz inexorável; mas, ainda assim, a Piedade não deixa de orar junto dos degraus do seu trono.
       Porque sua irmã é a Esperança, e a Esperança nunca morre nos céus. De lí ela desce ao seio dos maus antes que sejam precitos.
       E os desgraçados na sua miséria conservam sempre olhos que saibam chorar.
       A dor mais tremenda do espírito quebrantam-na e entorpecem-na as lágrimas.
       O Sempiterno as criou quando nossa primeira mãe nos converteu em réprobos: elas servem, porventura, ainda de algum refrigério lá nas trevas exteriores, onde há o ranger dos dentes.
       Meu Deus, meu Deus! — Bendito seja o teu nome, porque nos deste o chorar.









Fragmentos de: Eurico o Presbítero.
Capítulo três, páginas 37 à 43; capítulo quatro, páginas 44 à 50.





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