24 de setembro de 2010




Umberto Eco

Como escrevo



Os inícios remotos

    Como autor de obras narrativas, sou um sujeito bastante anômalo. Com efeito, comecei a escrever contos e romances entre os oito e quinze anos, depois parei para recomeçar somente às vésperas dos cinqüenta. Antes dessa explosão madura de imprudência, tive mais de trinta anos de presumido pudor. Eu disse “presumido”. E explico. Vamos por ordem, ou seja, como é meu costume narrativo, dando um passo atrás.
    Comecei a escrever romances assim. Pegava um caderno qualquer e escrevia o frontispício, dando título. Depois escrevia embaixo o nome do editor, que era a Tipografia Matenna. Procedia então à colocação, a cada dez páginas, de uma ilustração, do tipo daquelas de Delia Valie ou Amatto.
    A escolha da ilustração determinava a história que eu poderia construir. Desta, eu escrevia algumas páginas do primeiro capítulo. Mas, para fazer algo de editorialmente correto, escrevia em letra de fôrma, sem poder permitir-me correções. Óbvio que, depois de algumas páginas, abandonava a empresa. Assim fui, naquela época, autor apenas de grandes romances incompletos.
    Desta produção (perdida em alguma mudança) conservo somente uma obra acabada, mas de gênero incerto. (...)Daí a idéia de escrever (...) o diário de um mago Pirimpimpino que se apresentava como descobridor, colonizador e reformador de uma ilha no Oceano Glacial Ártico, a Ghianda, cujos habitantes adoravam o deus Calendário. Este Pirimpimpino anotava dia a dia, e com grande pedantismo documental, fatos e (eu diria hoje) estruturas sócio-antropológicas de seu povo, entremeando, porém, estas páginas de diário com exercícios literários. (...)
    De resto, o narrador descrevia (e desenhava) a ilha sobre a qual reinava, bosques, lagos, costas e regiões montanhosas, entretinha-se com as próprias reformas sociais, com os ritos e mitos de seu povo, apresentava os próprios ministros, falava de guerras e de pestes... O texto alternava-se com desenhos e o conto (que não respondia às regras de nenhum gênero) desaguava na enciclopédia — e com o distanciamento pode-se ver como as audácias infantis podem determinar as fraquezas da idade adulta. (...)
    Depois daquelas experiências, decidi que deveria me dedicar aos quadrinhos, e cheguei a terminar alguns. Se naquela época existissem fotocopiadoras, teria feito uma ampla distribuição; (...). Na escola, eu escrevia narrativas porque na época as “redações” (de argumento obrigatório) foram substituídas pelas “crônicas” (nas quais tínhamos que contar livremente trechos de vida). Eu era excelente em esboços humorísticos.(...) Entre 1944 e 1945 ocupei-me de épica, com uma paródia da Divina Comédia. (...)
    Aos dezesseis anos, nasceu o amor pela poesia, devorava os herméticos. No arco de pouqufssimos anos, decidi que minha poesia tinha a mesma origem funcional e a mesma configuração formal que a acne juvenil. Daí a decisão (mantida por um trintenário) de abandonar a escrita dita criativa e de limitar-me à reflexão filosófica e à atividade ensaística.


O ensaísta e o narrador

    Decisão pela qual, durante trinta e poucos anos, nunca sofri. Quero dizer, não fui daqueles condenados a escrever de ciência com o desejo ardente de passar à arte. Considerava-me completamente realizado assim, aliás, considerava com um certo desdém platônico aos poetas, prisioneiros de sua mentira, imitadores de imitações, incapazes de alcançar aquela visão da idéia da hiperabundância com a qual — filósofo — eu sentia ter casto, pacato e cotidiano comércio.
    De fato, percebo agora, eu satisfazia nesse meio-tempo uma paixão narrativa, mas sem me dar conta e de três formas. Antes de tudo, através de um exercício constante da narratividade oral (fizeram-me muita falta os filhos crianças, quando cresceram, porque não podia mais contar-lhes fábulas). Em segundo lugar, jogando com as paródias literárias. E por fim fazendo de cada ensaio crítico uma narração. Devo explicar esse ponto, pois considero essencial, seja para entender minha atividade ensaística ou o meu (tardio) futuro de narrador.
    Quando escrevi minha tese de graduação, intrigou-me uma objeção do segundo relator, que me disse: “você trouxe à cena as várias faces de sua pesquisa como se tratasse de uma investigação, anotando até mesmo as pistas falsas, as hipóteses que depois descartaria; enquanto um estudioso maduro consuma tais experiências, mas restitui a público (na redação fmal) apenas as conclusões”. Reconheci que minha tese era exatamente como ele dizia, mas não o via como um limite. Mais, foi justamente naquele momento que me convenci que toda pesquisa deve ser “contada” deste modo. E assim acredito ter feito com todas as minhas obras ensaísticas seguintes. Podia, portanto, ficar tranqüilamente sem escrever histórias, pois satisfazia efetivamente minha paixão narrativa de outra maneira.


De onde se parte?

     Entre os 46 e os 48 anos, escrevi o meu primeiro romance, O nome da rosa. Não tenho intenção de discutir as motivações que me levaram a escrever um primeiro romance: são múltiplas, provavelmente somam-se entre si e considero que afirmar que me deu vontade de escrever um romance é motivo mais do que suficiente.
    Uma das perguntas que me foram feitas foi sobre as fases que se seguem na geração de um texto. A pergunta, felizmente, pressupõe que a escritura atravesse fases. De hábito, os entrevistadores ingênuos oscilam entre duas persuasões que se contradizem entre si: uma, que um texto dito criativo desenvolve-se quase instantaneamente na chama mística de um arrebatamento de inspiração; a outra, que o escritor tenha seguido uma receita, uma regra secreta que é preciso desvelar.
    Não há regra, ou melhor, há muitas, variáveis e flexíveis; e não existe o magma da inspiração. Mas é verdade que há uma idéia inicial e que existem fases muito precisas de um processo que se desenvolve pouco a pouco.
    Os meus três romances nasceram todos de uma idéia seminal que pouco mais era que uma imagem: aquela que tomou conta de mim e que deu-me vontade de seguir adiante. O nome da rosa nasceu quando fui invadido pela imagem do assassinato de um monge em uma biblioteca. (...) Não sei. O fato é que aquela imagem, do monge assassinado durante a leitura, em um determinado momento parecia pedir que lhe construísse algo em tomo. O resto nasceu pouco a pouco, para dar sentido àquela imagem, inclusive a decisão de situar a história na Idade Média. De início pensei que deveria se desenrolar em nossos tempos; depois decidi que, já que conhecia e amava a Idade Média, melhor seria tomá-la teatro de minha história. Todo o resto veio por si, pouco a pouco, lendo, revendo imagens, reabrindo armários onde se acumulavam há 25 anos as minhas fichas medievais, escritas por motivos totalmente outros. (...)


Antes de tudo, construir um mundo

    Mas para onde caminha um romance? Eis aí o segundo problema,que considero fundamental para uma poétcia da narratividade. Quando, em uma entrevista, me fazem a pergunta: “Como o senhor escreveu o seu romance?”, em geral corto e respondo: “Da esquerda para a direita”. Mas aqui tenho espaço suficiente para dar uma resposta mais articulada.
    É que julgo (ou pelo menos pude compreendê-lo melhor agora, depois de quatro experiências narrativas) que um romance não é apenas um fato lingüístico. Um romance ( como qualquer narração que fazemos todo dia, contando porque chegamos atrasados naquela manhã ou como nos desembaraçamos de um importuno) usa um plano da expressão (as palavras, decerto, tão difíceis de traduzir em poesia porque nela conta também o seu som) para restituir um plano do conteúdo, ou melhor, aquele dos fatos narrativos. Mas no nível do conteúdo podemos distinguir ainda outras duas vertentes, a fábula e o enredo.
    A fábula da Chapeuzinho Vermelho é pura seqüência de ações, cronologicamente ordenadas: a mãe manda a menina para a casa da avó, a menina encontra o lobo (...). O enredo pode organizar tais elementos diversamente: por exemplo, o conto poderia começar com a menina que vê a avó, espanta-se com suas feições, depois relembra o momento em que saiu de casa; ou com a menina que, de volta a casa sã e salva, e agradecendo ao caçador, conta à mãe as fases precedentes da fábula.
    A história de Chapeuzinho Vermelho é tão centrada na fábula que pode ser reconstituída de modo satisfatório em qualquer discurso, isto é, com qualquer expressão: através de imagens cinematográficas, ou em francês, ou em alemão, ou em quadrinhos.
    Ocupei-me muitas vezes com as relações intercorrentes entre expressão e conteúdo na oposição entre prosa e poesia. Por que “La Vispa Teresa avea tra l‘erbetta — al volo sorpresa gentil farfalleta?” Por que não a surpreendeu em uma moita ou entre flores? Mas naturalmente porque erbetta rima com farfalletta, enquanto espuglio teria que rimar com guazzabuglio. (...)
    Portanto, em poesia é a escolha da expressão que determina o conteúdo, enquanto em prosa é o contrário, é o mundo que se escolhe, e os eventos que nele desenrolam-se que nos impõem o ritmo, o estilo, as próprias escolhas lexicais.
    Todavia, seria errado dizer que em poesia o conteúdo (e com ele a relação entre fábula e enredo) é irrelevante. (...)


Do mundo ao estilo

    Uma vez desenhado este mundo, as palavras seguem e serão (se tudo vai bem) aquelas que aquele mundo, com os fatos que nele acontecem, exige. Por isso, em O nome da rosa o estilo é aquele — sempre homogêneo — do cronista medieval, preciso, ingênuo, estúpido, se necessário apagado (como pensaria um monge do século XIV). (...)


Como escrevo

    Pode-se compreender nesse momento o quanto são inúteis as perguntas do tipo “Inicia com notas, redige imediatamente o primeiro ou o último capítulo, escreve a caneta, a lápis, no computador?” Se se deve construir, dia após dia, um mundo, se se devem tentar infinitas estruturas temporais, se os gestos que os personagens fazem e devem fazer segundo a lógica do bom senso ou das convenções narrativas (ou contra as convenções narrativas) devem-se adaptar à lógica das restrições (repensando, apagando, refazendo continuamente), não existe um modo uniforme de se escrever um romance.
    Pelo menos para mim. Sei de autores que acordam às oito da manhã, põem-se à máquina de escrever das oito e meia às doze horas (nulla dies sine línea) e depois param e vão passear até de noite. Eu não. Antes de tudo, para escrever um romance, o ato de escrever vem depois. Primeiro, lê-se, preenchem-se fichas, desenham-se retratos de personagens, mapas dos locais e esquemas de seqüências temporais. (...)


O escritor e o leitor

    Porém, não gostaria que as minhas afirmações encorajassem logo uma outra, comum aos maus escritores: que você escreve apenas para você mesmo. Desconfiem de quem diz isso, é um narcisista desonesto.
    Só existe uma coisa que você escreve para si mesmo, e é a lista do supermercado. Serve para lembrar o que você tem que comprar, e quando as compras forem feitas pode ser destruída, pois não serve para mais ninguém. Qualquer outra coisa que se escreva, escreve-se para dizer alguma coisa a alguém.
    Só se escreve para um Leitor. Infeliz e desesperado aquele que não sabe se dirigir a um Leitor futuro.





IN: ECO, UMBERTO. Sobre a literatura.Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 277 a 305. Texto adaptado pela prof. Luciane Raupp, FACCAT, RS.





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