3 de janeiro de 2010




Reflexões sobre uma virada de ano 




      Tudo começou depois que fomos deitar lá em cima. A madrugada havia passado depressa. O sol penetrava pela janela da copa, refletindo nos copos enxaguados que Tânia depositava sobre a pia. “Vamos nos deitar um pouco”, ela disse. De pronto não entendi se o convite me incluía. Hesitei um pouco, até que você tomou a frente e resolvi segui-las. Subimos as escadas até o quarto onde as outras duas garotas permaneciam deitadas desde a madrugada. Uma delas ferrada no sono, a outra semiadormecida. Nenhuma palavra para não acordá-las, deitamos nós três no mesmo lençol toscamente aberto sobre o piso bruto, do outro lado do cômodo. Fiquei de costas para vocês, apreciando o despertar duma das garotas. Em algum momento, a Tânia se levantou do meio de nós e catou algo em algum canto do cômodo. Voltou ao lençol me oferecendo a ponta de uma mochila como travesseiro. Eu permanecia deitado de bruços quando ela se virou de frente para você. Virei-me para ela e passei-lhe o braço pela cintura. Minha mão roçou-lhe despretensiosa o seio, mas foi pega com a ponta dos dedos e afastada com restante do braço. Daí ela se levantou e saiu do quarto. Ficamos só nós dois no lençol, você de frente para a parede, de costas para mim. Tomei o espaço deixado pela Tânia, aproximei-me, lhe pedi que virasse. Sugeri que fossemos embora, até minha casa para nos despedirmos melhor. Considerei a possibilidade de não nos vermos nunca mais: você morando em Floripa, com planos de mudança para o Nordeste, foi quando ouvi um "não".
      "Por que não?"
      “Porque nós somos amigos, cara!”
      “Mas não vamos nunca mais nos ver.”
      “Eu volto no meio do ano.”
      Levantei e desci as escadas. Encontrei a Tânia no balcão, mexendo numas comandas. Disse meia dúzia de palavras para não chegar sem cuspe e enlacei-a, amarrotando seu vestido na altura da cintura enquanto beijava-lhe o rosto e algumas mechas negras que se interpunham no caminho. Mesmo rechaçado de cara, arrastei-a de trás do balcão para as mesas, lutando contra sua resistência...  Insisti, e, derrepente, ela serenou, cessando os nãos e a resistência física. Senti que fosse ceder, mas, ao sentar numa cadeira puxando-a para o colo, escapou definitivamente. Fiquei ali, ouvindo ela dizer que também sentira vontade de ficar comigo, mas que estava apaixonada por uma mulher. Estático e perplexo senti como se não a conhecesse, meio idiota, até. Reparei que ela havia notado minha perplexidade, então, embora ter dito aquilo, explicou que gostava de homem... Daí você apareceu derrepente e eu te contei o que tinha acontecido.
      Ensaiei ir embora, dizendo que vocês e as outras duas teriam assunto depois que eu saísse. Vocês disseram que não, que não era bem assim, mas não adiantou: "se uma garota viesse se esfregar em mim eu contaria tudo para outro homem na primeira oportunidade". Daí você lembrou a Tânia que uma das garotas deitadas havia sugerido a formação de casais na ocasião dos convites, e minhas esperanças de agarrar alguém renovaram-se.
      "Qual das duas?"
      "A mais bonitinha."
      "Aquela que fez a operação nas orelhas?"
      "Não, a outra."
      "Olha vocês duas!..."
      Passei pela cozinha, mas quando pus o pé na escada me ocorreu que talvez vocês estivessem conspirando para que o meu filme ficasse mais queimado do que já estava. Voltei sorrateiramente, olhei pela porta e vocês estavam placidamente silentes. Senti que estavam sinceramente empenhadas em me ajudar.
      Subi as escadas. Lá estavam elas deitadas: uma ferrada no sono, a outra semiacordada, tapada até o pescoço. Deitei ao lado, passei-lhe o dedo no rosto, ela abriu os olhos sem se assustar, mas puxou um pouco o cobertor para cima. Aproximei-me e beijei-lhe, mas ela puxou um pouco mais o cobertor, tapando o rosto finalmente.
      Desci. Vocês permaneciam na mesma. Sentei junto ao balcão. Você perguntou como fui. Disse que não havia rolado nada. Perguntou o que eu havia feito, e eu lhe contei a breve história. Bom, daí surgiu o assunto das prostitutas e vocês me aconselharam a não ficar falando sobre. Fiz pouco caso batendo uma mão sobre a outra. Nisso a garota desceu, passou por nós. Da janela deu pra ver ela lá fora, indo ao banheiro. Olhei bem para ela:
      "Que gostosa! Pegar e virar do avesso!"
      Vocês apenas me olharam.
      Resolvi ir embora. A Tânia me acompanhou ao portão, abriu o cadeado.
      "Desculpe", eu pedi.
      "Apareça".
      "O quê? O cara que tentou agarrar a dona do bar? Minha fama não está nada boa..."
      "E a minha, então...".
      



S.E.





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