15 de dezembro de 2008




E n s a i o




O Mito Grego Como Expressão Dos Elementos Estruturais Da Psique




    Sou de opinião de que as vocações ou “tendências” genuínas têm acima delas uma figura arquetípica ou mítica vaga e muitas vezes invisível, fascinante e irresistível em si mesma, ainda que inconsciente, que de algum modo é símbolo do significado interior ou da “retidão” dessa vocação.
Liz Greene






     O presente ensaio visa demonstrar a variedade de padrões expressados pelo homem em sua cultura ao longo do tempo como matizes elementares que estruturam a sua psique. Tais elementos estão condensados em figuras simbólicas personificadas que adensam uma estrutura peculiar denominada mito. Longe do conceito de que “mitos são apenas mitos”, denotando reflexos da limitação discursiva de alguns povos “mais atrasados” acerca do mundo, ou mesmo insinuando desdenhosamente o valor da estrutura mítica por conter um enredo fictício, sabemos que alguns recursos fantásticos característicos dos mitos são utilizados para discorrer sobre verdades eternas.
     A despeito do título deste ensaio, deve ficar claro que a estrutura mitológica não é exclusividade dos gregos; ela é atributo nato do homem e, portanto, de todos os povos que habitam a Terra. Diferentes tradições revelam em sua cultura histórias dotadas dos mesmos elementos básicos sem nunca terem tido contato físico umas com as outras. Tal fato demonstra a força de certos símbolos ao se insinuarem na cultura humana e sua tenacidade em transcender tempo e espaço, sugerindo uma estrutura psíquica geral bem delineada. Optei pela exibição da tradição grega, devido ao seu crédito nos diversos setores da cultura ocidental. Crédito expresso pela retomada de seus valores clássicos em diversos ciclos históricos posteriores ao seu declínio. Todavia, antes de esmiuçar as interações entre mitologia grega e psiquismo, devo primeiro abrir caminho, avaliando alguns preconceitos incrustados no homem contemporâneo.


O Mito Científico

     Na forma de abordagem da realidade pela via denominada “método científico”, sob a égide da qual o pensamento humano se encontra há alguns séculos, existe a tendência limitadora de considerar o saber da Antigüidade destituído de razão, anacrônico e, portanto, descartável. Nem mesmo os mais benevolentes seguidores da ciência darão a ele o valor devido, pois limitar-se-ão a tratá-lo eufemisticamente, sob o roldão dos mesmos padrões epistemológicos lineares, como tentativas canhestras de povos esforçando-se para formular uma visão de si e do mundo em torno. Essa perspectiva limitada baseia-se numa concepção temporal de seqüência linear que desqualifica e apregoa a ingenuidade das concepções da Antigüidade em relação aos “esclarecidos” tempos modernos. Porém, quando inquiridos acerca de questões científicas insolúveis argumentam que se ainda há dificuldades em definição, se existem mistérios, é porque o homem ainda não conseguiu refinar suas reflexões para decifrá-los, partindo do princípio da evolução, justificativa conveniente para legitimar o perpétuo ciclo de descobertas e camuflar a profunda dicotomia entre o método científico e o ideário que prega: o saber absoluto. Não percebem que permanecem seduzidos pela esfinge, cedendo eternamente ao decífra-me ou te devoro com que ela aborda os passantes distraídos.
     As bases dessa forma descritiva da realidade são atribuídas a Bacon e Descartes, que lançaram os fundamentos da ciência física espacial dos últimos 400 anos, cujas diretrizes são o determinismo o mecanicismo e a linearidade como pedras-piloto na descrição dos fenômenos físicos. Nesses termos, vejamos um pequeno exemplo dessa maneira de pensar: O alfabeto português é formado por 23 letras dispostas em ordem linear: A, B, C, D... N, O, P... X, Z. Para se chegar em “X”, por exemplo, deve-se necessariamente passar por “D” e “O”, partindo-se do início do alfabeto. Ou seja, para se chegar a um determinado ponto, tem que se passar necessariamente por um anterior, ou, se estou num certo estágio concluo automaticamente a partir do determinismo qual será o ponto subseqüente em que me encontrarei adiante. Para esclarecer melhor o assunto, farei uma comparação usando o exemplo de uma forma oposta de proceder que nos é revelada nos contos de fadas. Uma característica dos contos de fadas é o desafio do interdito: um interdito fortíssimo que precisa ser superado. Todos nós passamos por ocasiões difíceis na vida, situações em que estamos numa espécie de “beco sem saída”, e alguns se desesperam imaginando conseqüências trágicas, dadas as circunstâncias adversas do momento. Mas também há outro elemento muito especial nos contos de fadas denominado talismã: objetos, seres prodigiosos ou acontecimentos que resolvem de maneira instantânea os problemas mais difíceis apresentados. Acerca disso, vejamos um exemplo de talismã extraído do conto Palavras Aladas:


    Foi portanto por acaso que o rei passou frente a um desses cômodos. E passando ouviu um murmúrio, rasgo de conversa. [...] o rei colheu as lavas, palavras, com que um jovem [...] derramava sua paixão aos pés da amada.
    A lembrança daquelas palavras pareceu voltar ao rei de muito longe, atravessando o tempo, ardendo novamente no peito. [...] Fio da longa meada do passado, vinha agora envolvê-lo, religá-lo a si mesmo, exigindo sair de calabouços.
    ─ Que se abram as portas! ─ gritou comovido, pela primeira vez gostando do seu grito, ele que sempre havia falado tão baixo. E escancarou os batentes à sua frente.
(COLASANTI, 1985, p. 91)


     No trecho acima, o talismã apresenta-se na forma de um acontecimento. O teor repentino da situação é descrito através das expressões por acaso, novamente, pela primeira vez, referindo-se a fenômenos outrora inimagináveis pelo grau duma situação adversa. Portanto, o poder do talismã consiste em quebrar a rígida estrutura linear/determinista que pauta o pensamento racional, chamando nossa atenção à atuação de forças provendo a realidade com infinitas possibilidades alheias ao controle e entendimento humano.
     Dentro da concepção de tempo linear está embutido outro termo: evolução. Esse conceito é útil quando aplicado à história do aprimoramento tecnológico do Homo Sapiens Sapiens, o que não significa o mesmo que aprimoramento humano. O erro, portanto, reside em incluir o conhecimento sobre o ser humano no padrão de tempo linear usado para avaliar o avanço tecnológico. Ora, as perguntas fundamentais acerca do homem ainda continuam sem resposta. Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Essas questões já eram abordadas pelos filósofos gregos na Antigüidade e até hoje não há respostas para elas. Aqueles que chegaram primeiro ao cume da montanha filosófica descobriram que ele é rodeado por um imenso vazio. A maior realização do saber humano está contida na singela máxima socrática do “tudo que sei é que nada sei”.
     Sobre a limitação da ciência humana de todos os tempos em responder perguntas básicas e sobre as “descobertas” de uma ciência pretensamente evoluída, recorro ao Eclesiastes: “O que foi, ainda será; o que foi feito far-se-á: não há nada de novo debaixo do sol.” (ECLESIASTES 1, 9). Dado o contexto supracitado, o versículo onze é ainda mais eloqüente ao descrever a tendência do homem em negligenciar o saber antigo: “Não haverá memória das coisas que hão de suceder depois de nós, entre aqueles que viverão mais tarde.” (ECLESIASTES 1, 11). Só para nos situarmos no tempo, essas verdades foram proferidas por Salomão em seu reinado de quarenta anos após suceder o pai, Davi, no trono de Israel, em cerca de 997 a.C..


O Legado da Grécia Antiga

     Toda a estrutura do pensamento ocidental deriva da mente grega. Herdamos as mesmas perguntas sem resposta da Antigüidade e nos iludimos achando que vivemos em uma época esclarecida. Aliás, desde a Grécia Antiga, nada de novo surgiu em Filosofia; tudo o que veio depois foram apenas derivações. O filósofo indiano Bhagwan Shree Rajneesh (1931-1990) diz o seguinte: “[...] na Grécia, havia Sócrates, Platão e Aristóteles, os quais criaram toda a mente do Ocidente.” (RAJNEESH, 1975, p.180). E mais: “[...] No Ocidente, muitas pessoas vêm a compreender um fato e pensam que estão contribuindo para algo novo. Parece novo porque não estão familiarizadas com o fato, não sabem que já existia.” (Idem). Arrematando, mais um dito do rei Salomão: “Ninguém pode dizer: ‘Eis, aqui está uma coisa nova’, porque ela já existia nos tempos passados’” (ECLESIASTES 1, 10).

O Mito Grego: Substrato da Alma

     Na perspectiva em que estamos abordando o conhecimento humano, podemos incluir o saber grego nos assuntos relativos à psique (alma). Na verdade, esses conhecimentos não foram ordenados de forma sistemática como na psicanálise atual, mas sim expressos por canais variados da cultura como o teatro e a teologia. Entendemos hoje que os deuses gregos constituíam em sua variedade aspectos diferenciados da alma, e os relacionamentos, muitas vezes conflituosos e incestuosos entre eles, interações dinâmicas desses aspectos entre si dentro da psique. A epígrafe que encabeça esse ensaio é de autoria da psicanalista junguiana, Liz Greene. A genialidade da obra de Jung ultrapassou o século vinte, resgatando a bagagem do conhecimento grego, sinal contundente da suprema realização humana daquela civilização.
     Jung esforçou-se muito para grifar que os mitos são projeções de padrões perenes da alma humana, padrões que nomeou como arquétipos. Para ele, os mitos gregos carregam implicitamente os componentes estruturais da psique (arquétipos), individualmente personificados em determinados personagens, e coletivamente convivendo nos enredos das histórias. Ao abordar figuras mitológicas gregas, Joseph L. Henderson diz o seguinte: “Estas personagens divinas são, na verdade, representações simbólicas da psique total, entidade maior e mais ampla que supre o ego da força que lhe falta.” (HENDERSON, 1964, p. 110, 112). Tal afirmação vem no contexto mítico do “herói”, arquétipo universal presente nas mais variadas tradições. Em relação ao conteúdo da frase, ela expõe o fato corriqueiro nas histórias cuja fraqueza inicial do herói (ego) recebe apoio de um ente mais poderoso (psique total), como por exemplo, Aquiles que tinha o centauro Quiron como protetor.
     Caso a relação entre arquétipo, mito e psique tenha ficado obscura, farei uma analogia ─ uma comparação partindo de algo familiar ─ com os computadores hodiernos. Sabemos que um computador é formado por programas diversos, alguns maiores que gerenciam conjuntos de programas menores. Há programas básicos, pré-estabelecidos para um dado modelo se computador, pressupondo seu funcionamento dentro do padrão em que foi programado. Analogamente, o computador representa a psique, e os arquétipos seriam os programas específicos que o modelo operacional “Homo Sapiens Sapiens” recebeu, como por exemplo, apaixonar-se, reproduzir-se, guerrear, etc.. Os programas básicos, como por exemplo, os fortes arquétipos da “mãe” e “Zeus”, rei dos deuses, tutelariam outros programas. Os mitos, então, seriam a expressão desses programas bem como a relação deles entre si.


O Mito Hoje


Minotauro

    O rei Minos era filho de Europa e Zeus, filho do deus enquanto touro. Era o rei de Creta e, de sua ilha, exercia muito poder sobre todas as ilhas gregas [...] tinha lutado com seus irmãos [...] pelo trono, defendendo sua reivindicação por direito divino. Orou ao deus Posídon [...] para fazer sair um touro do mar, como sinal, e encerrou a oração com a promessa de sacrificar imediatamente o animal, como oferenda e símbolo de servidão. Posídon [...] aquiesceu, o animal apareceu no momento devido; Minos subiu ao trono. Mas ao contemplar a majestade do animal, pensou nas vantagens que teria em incluí-lo em seu rebanho, e arriscou uma substituição, supondo que o deus não notaria [...] Ofereceu no altar de Posídon o melhor touro branco que possuía, e juntou o touro marinho sagrado ao seu rebanho.
    Posídon, entretanto, não gostou da substituição. Retaliou a blasfêmia convocando Afrodite para instilar em Pasífae, esposa de Minos, uma incontrolável paixão pelo touro [...] Pasífae persuadiu Dédalo, o famoso artesão, a fazer-lhe uma vaca de madeira, onde ela poderia se unir sexualmente ao touro. Dédalo executou o trabalho, Pasífae entrou na vaca e o touro, por sua vez, entrou em Pasifae. Dessa união nasceu o Minotauro, um hediondo monstro com corpo humano e cabeça de touro, que se alimentava de carne humana. Minos, amedrontado e envergonhado, contratou Dédalo para construir um labirinto onde pudesse esconder essa terrível criatura; ali eram deixados grupos de rapazes e moças vivos para alimentar o Minotauro.
    O erro básico dessa história triste não pertence à rainha Pasífae, mas ao próprio Minos, embora a rainha tenha exteriorizado o destino invocado por ele.
(GREENE, 1995, p. 168)


     Essa história aborda a eterna configuração indivíduo/coletividade. Em nível social, o indivíduo tem um lugar, uma função definida, um status público em sua comunidade. Devido a esse status, ele possui algum grau de poder social, o que em nossa sociedade implica dinheiro, mas em outras pode significar outros fatores também relacionados a poder e prestígio social ou comunitário. Em seu sentido mais amplo, o termo “cargo” implica uma função ou um papel que um indivíduo desempenha juntamente com outros. A anomalia reside em canalizar para o nível da exclusividade pessoal, sob a forma de privilégios, a energia relativa aos assuntos coletivos que um determinado nicho social provê. Em nível de incumbência de poder, o Minotauro personifica em alto grau a aberração decorrente do melindre entre o aspecto de responsabilidade que as altas posições demandam e as conseqüências disso no corpo social.
     É curioso notar a plena abrangência desse mito nos dias atuais, sobretudo em nosso sistema político, na sangria dos recursos públicos em detrimento do incremento de oportunidades sociais visando a melhoria da qualidade de vida da população. Trata-se de homens exclusivistas desvirtuando o papel coletivo do qual foram incumbidos, em benefício próprio. Da irresponsabilidade dos poderosos surgem aberrações que necessitam ser ocultadas num aparato imenso como um labirinto, assim como as negociatas políticas se valem do complexo aparelho burocrático. Ademais, há o empreendimento da guerra, no qual milhares de jovens são sacrificados como aqueles que eram jogados ao labirinto para servirem de alimento ao monstro. Vejamos o comentário de Joseph Campbell sobre o rei Minos:


    Ele tinha transformado um acontecimento público em ganho pessoal, enquanto o sentido total de sua investidura como rei é que ele não era mais um simples homem particular. A devolução do touro deveria ter simbolizado sua submissão absolutamente altruísta às funções de seu papel. Por outro lado, a sua retenção representou um impulso de auto-engrandecimento egocêntrico. Assim o rei “pela graça de Deus” tornou-se perigoso tirano parasita ─ cada um por si. Assim como os tradicionais ritos de passagem ensinavam a pessoa a morrer para o passado e renascer para o futuro, as grandes cerimônias de investidura despojaram-no de seu caráter privado e vestiram-no com o manto de sua vocação [...] Através do sacrilégio da recusa do rito, entretanto, a pessoa se separou, como unidade, da unidade maior da comunidade total; assim o Um se dividiu em muitos, que lutaram um contra o outro ─ cada um por si ─ e só podiam ser governados pela força. (CAMPBELL, apud GREENE, 1995, p. 168, 169)



Escala de Manifestação Arquetípica     Os arquétipos podem se manifestar em nível individual e coletivo. Por exemplo, o mito da criação: praticamente todos os povos do planeta, desde os índios norte-americanos, passando pelos antigos celtas até os aborígines australianos, entre outros muitos, têm um mito da criação. Esse mito é sempre apresentado num contexto cosmológico, narrando a formação do mundo: o surgimento da Terra, dos rios, das árvores, do homem, etc.. O tema arquetípico desse mito é o surgimento, o nascimento. Assim, tomado em nível individual, esse tema mitológico também pode simbolizar nossos inícios, ou seja, novos empreendimentos, períodos de expansão individuais, florescimento da criatividade, etc..
     Os arquétipos são impulsos psíquicos refletidos exteriormente nos campos de experiência relativos ao homem. Eles traduzem uma parcela da aventura humana na Terra em certos padrões comportamentais perpetuados ao longo dos tempos. O poder do mito reside em condensar numa pequena história trágica e ricamente simbólica uma verdade eterna, repetida no alternar das civilizações e nas biografias pessoais ao longo das eras, fundindo passado e futuro num agregado homogêneo. Parece que não há como viver sem ele, pois cada atitude, relacionamento ou desejo evoca um padrão mítico que rege a ocasião em particular. Nesse contexto, conhecer os mitos gregos significa tomar consciência das nossas potencialidades psíquicas para obter um melhor instrumental e lidar com eles assim que adentrarem nossas vidas. Dessa forma, seremos mais capazes de atravessar o rio das vicissitudes com menor sofrimento, e, conscientes da nossa configuração humana, adotar uma postura mais despojada e menos neurótica frente às adversidades propostas pela existência.



Referências bibliográficas
Bíblia sagrada. Lisboa: Edição da Palavra Falada, 1974.
COLASANTI, Marina. Doze reis e a moça no labirinto do vento, Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, 1985.
GREENE, Liz. Astrologia do destino, São Paulo: Cultrix, 1985.
HENDERSON, Joseph L. Os mitos antigos e o homem moderno. In. : JUNG, Carl G. (Org.). O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
RAJNEESH, Bhagwan Shree. Nem água, nem lua. São Paulo: Pensamento, 1975.



Saturnino Estrada


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