11 de setembro de 2010








Anoitecer de Domingo



Domingo, final de tarde, a noite se avizinha. Numa cidade encravada no interior rio-grandense Ana e Rodrigo acabaram de retornar do sítio. Atirado no sofá da sala Rodrigo assiste, muito a contragosto, a um besteirol americano qualquer. Em seu quarto, recostada na cabeceira da cama de solteira, Ana olha através da janela. A neblina está tão densa lá fora que não se pode enxergar nem a casa vizinha. Rodrigo atravessa a porta do quarto, aproxima-se calado e senta num colchão ao lado da cama.     
─ O que tu quer fazer agora, Rodrigo?     
─ Vamos ficar deitados juntos...    
Os últimos dias foram de trabalho para os dois. Os preparativos do almoço no sítio exigiram empenho: as compras, a fila de supermercado, a limpeza e organização do salão para receber os convidados, o preparo do almoço para vinte pessoas. Além do mais, a maneira polida de receber os visitantes: a cara boa, o sorriso que é praxe dos bons anfitriões. Tudo demandando presteza absoluta, apesar dos mal-estares de Ana na ocasião.   
─ Eu queria fazer alguma coisa mais dinâmica ─ continuou ela.    
─ Vamos dar uma caminhada, então. Está uma bela neblina lá fora.   
─ Não...    
─ Bem, então acho que vou ficar deitado, lendo um pouco.     
─ Rodrigo, é apenas cinco horas da tarde, e eu não vou ficar aqui, parada! Preciso fazer alguma coisa!    
─ Olhe, Ana, o dia foi perfeito. Já vimos gente, conversamos com outras pessoas...
─ Nós somos como a água e o vinho, mesmo. Não, a água e o vinho ainda se misturam. Somos como água e óleo!     
─ Está bem, Ana. Se eu quiser ficar aqui, deitado, lendo até anoitecer, e tu quiser fazer outra coisa, talvez sair, isso não precisa ser um problema.     
─ Gostaria que fizéssemos alguma coisa juntos. Acho que seria uma falta de respeito sair e te deixar aqui, sozinho.     
─ Tu quer ir a algum lugar? Acho que podemos ter cada um o seu espaço. Não precisamos deixar de fazer o que queremos por causa do outro e nos angustiarmos por não ficarmos o tempo todo interagindo ─ ele opina. ─ Se tu quiser ir passear, talvez visitar o Nei, fique à vontade...     
─ O Nei? ─ Ana adquire a feição da incredulidade. De repente ela dispara:    
─ Seu verme, tu é muito passivo!     
De assalto, a atmosfera do aposento é invadida por uma nuvem de revés. Deitado no chão, ao lado da cama, Rodrigo não estava preparado para aquilo. Com a mesma sensação absurda de quem vê um escorpião sumir numa fresta escura segundos depois de ter sido surpreendido pela dor lancinante do ferrão venenoso, profundamente transtornado, se defende:     
─ Eu sou assim! Se tu não está satisfeita é só procurar outra pessoa! ─ responde exaltado, batendo uma mão sobre a outra em gesto de desdém.     
─ Eu não estou procurando outra pessoa! ─ afirma Ana, saltando da cama para fora do quarto. Cinco minutos depois está de volta, enrolada numa toalha.     
─ O que tu vai fazer agora? Vai a algum lugar? ─ indaga Rodrigo, ansioso.     
─ Vou fazer o que tu me disse para fazer! ─ ela responde, tirando a toalha. A face rubra, os olhos arregalados em chamas, as mamas rígidas à mostra compunham seu ar enérgico: era um animal pronto para a luta. Abre o roupeiro, veste um blusão, mais um por cima... ─ Eu já tenho bastante idade! Ninguém me diz o que fazer!    
Ainda perturbado pelo golpe, Rodrigo tenta sair da inércia com esforço. De forma meio canhestra adquire uma postura de conciliação, chamando Ana para perto de si. Ela o fita nos olhos, olhos brilhantes, levemente marejados, refletindo a agitação interior com a qual ele luta para dominar. Ana se aproxima a contragosto, bem devagar. Senta na cama com a cabeça baixa, olhar cravado nas mãos entrelaçadas. Rodrigo engole em seco e, com a voz embargada, tenta entabular uma conversa:     
 Veja, Ana... não sou super-homem. Por que tu está me julgando?    
─ Não estou te julgando.     
─ Ana, deixe eu te dar um conselho...     
─ Se conselho fosse bom... ─ essas palavras saem pausadamente, entrecortadas de raiva.     
─ Posso te dizer uma coisa? ─ Rodrigo tenta novamente.    
Ela assente com um balançar de cabeça, os olhos fixos nos dedos nervosos.     
─ Tu precisa aprender a descansar. Não deve te sentir culpada por estar parada de vez em quando. Hoje é Domingo!    
 ─ Eu já transcendi isso de ter que descansar. Além do mais não gosto dessa tua atitude. Todo mundo passa por cima de ti.    
─ De que tu está falando? Quem passou por cima de mim? O que tu quer que eu faça, afinal?     
─ Melhor eu não dizer nada ─ ela responde tentando conter a raiva com esforço.     
─ Não entendo por que tu está criticando a minha personalidade. Só faltou me chamar de bosta. Mexeu com meu orgulho de macho ─ ele coloca bem-humorado.     
─ Mas então reaja!     
Pega a mão dela:     
─ O que aconteceu? Tu estava tão alegre no almoço, conversando, rindo...
─ A fingida... Aquilo era uma máscara...     
─ Calma, Ana. Tu é muito generosa, todo mundo te ama. Eu sugeri que deitássemos para ficarmos um pouco juntos. Acordamos cedo, demos só um beijo e mais nada o dia inteiro. Espere um pouco. Talvez surja alguma coisa interessante para fazermos ─ completou, percebendo que ela começava a serenar. E depois de um pequeno silêncio:     
─ Não é tu... Sou eu mesma o problema... ─ e cai em choro convulso. ─ Eu tenho que ficar carregando todo mundo para cima e para baixo. Ninguém faz nada por mim. O pai está endividado, vai ter que entregar as máquinas e fechar a fábrica, e a mãe vive triste por ele ter arranjado outra e saído de casa. Tu não viu a cara dela lá no almoço? Além de tudo, não estou conseguindo tornar o sítio autossustentável. Os eventos sempre são cancelados por falta de público, e tenho que cobrir as despesas do próprio bolso. Parece que as coisas estão desmoronando, tudo está dando errado para mim. Às vezes penso em jogar tudo para o alto e me tornar uma daquelas professoras que só trabalham e consomem nos finais de semana. Rodrigo sobe na cama, toma os pés dela entre as mãos e começa a massageá-los enquanto lágrimas em profusão jorram dos olhos de Ana como uma chuva bem-vinda para aplacar um incêndio descontrolado.
Anoitece...     
Dissipa-se a neblina, revelando a placidez de um céu púrpura profundo com alguns pingentes muito brilhantes, entre eles uma meia lua em forma de sorriso. O silêncio da noite penetra o quarto, envolvendo os dois.     
─ Está com fome? Sente aqui ─ ela faz um gesto para que Rodrigo se recoste ao seu lado na cabeceira da cama. ─ Estou com frio nos pés... 
     Ele pega uma almofada e cobre os pés dela. Com o intuito de animá-la, procura evocar uma imagem agradável, comentando umas fotos que achara na casa:     
─ Vi umas fotografias na tua escrivaninha...     
─ Quais?     
─ Uma praia com coqueiros.     
─ Foi em Porto Seguro. Não faz muito tempo que fizemos aquela viagem. Está gostando do livro?     
─ Fala de paixão, de pessoas que sofrem... Acho que é por isso que muita gente não gosta das histórias que ele escreve.     
─ Como assim?     
─ Por exemplo... Tem um trecho sobre a celebração do equinócio de outono. Nessa ocasião, quando a dançarina conhece o vagabundo, percebe que ele é a sua outra metade e conclui que acabaria se apaixonando e sofrendo, e por aí vai...     
Diante dessa descrição o rosto de Ana se ilumina subitamente, contrastando com a aflição de há pouco.     
─ Li até aí e parei. Não vou continuar. Não é bom se fixar nessas coisas. Podem acabar acontecendo de verdade.    
─ É claro ─ emenda Ana com um suave sorriso.


Sentados na cama, os dois compartilham um silêncio autêntico, salutar, em ressonância com a escuridão da noite lá fora.  
─ Rodrigo, deixe-me levantar.  
─ Onde tu vai?  
─ Vou fazer a ata da reunião. Ana deixa o quarto. Ele fica deitado. Enrola um travesseiro atrás da nuca e abre o livro. Tenta se abstrair na leitura, mas é obrigado a dividir atenção entre frases e uma corrente paralela de pensamentos que avalia sua disposição de espírito atual em comparação à da tarde fatídica. Uma nova disposição vai surgindo. Num impulso de euforia momentânea fecha o livro e vai à sala para encontrar Ana de caneta em punho, debruçada sobre um caderno.   
─ Consegue uma toalha?  
Ana levanta e vai buscá-la. Volta estendendo o braço com a toalha. Quando ele a pega, Ana a puxa de volta, trazendo-o para bem perto de seus finos lábios e de dois beijos bem pausados. Fica satisfeito, a atitude dela lhe soa conciliadora, amenizando a insegurança da qual fora assomado após a explosão emocional daquela tarde. Sai do banho e volta ao quarto. Atravessa a sala vazia até a cozinha. Ana não está na casa. Ensaia uma fome ausente ao montar um sanduíche: duas fatias de pão com manteiga recheadas com queijo e mortadela. À mesa da gélida cozinha azulejada, mastigando o frio sanduíche vai esfriando sua disposição de espírito. Passa a ruminar algumas imagens da tarde: “verme passivo”, relembra. Uma ponta de desaire lhe trespassa por uma fração de segundo. O alívio ocasionado pelo beijo dá lugar ao eco de suas experiências em relacionamentos anteriores: "quando um dos dois começa a perder o interesse surgem críticas ferinas, hostis para desqualificar o outro”. Como Ana se demora, volta ao quarto e deita-se para ler mais um pouco.  
─ Já comeu? ─ ela indaga, entrando no quarto.  
─ Onde tu foi?  
─ Ver a Ana Lúcia.  
─ E como vai a afiliada?  
─ Então, já jantou?  
─ Sim, acabei de comer um sanduíche.  
─ Só isso? Vou fazer a janta pra nós.  
─ Não estou com fome. Pode jantar se quiser. 
Ela vai à cozinha e logo retorna, pronta para deitar. Despe-se, afasta a colcha, apaga a luz do abajur. No colchão ao lado, Rodrigo aguardava por ela.  
─ Comeu?  
─ Sim.  
─ Ana...   
─ O quê?  
─ Desça aqui...  
─ Não estou me sentindo bem.  
─ Eu te deixo quietinha.  
Ela afasta a colcha e desce para o colchão, aninhando a cabeça no braço dele que acaricia o pequeno rosto de mulher. Abraça-a e começa a beijá-la, percorrendo com os lábios toda a extensão entre o pescoço e o abdômen. Ela submete-se com esforço, mas quando Rodrigo ultrapassa a linha do ventre, duas mãos enérgicas seguram-lhe pelas orelhas:  
─ Não vou fingir...  
─ O que foi?  
─ Não vou fingir. Não estou com vontade ─ diz voltando à cama.   
─ Ana, me deixe subir aí um pouco. 
─ Não estou bem. Deixe-me ficar quietinha, como os animais quando estão doentes ─ pede, abraçando um travesseiro.
Rodrigo está inquieto. Sente que os dois não estão bem reconciliados ainda. Uma prova da parte de Ana para amansar sua crescente insegurança seria bem-vinda. Procurando disfarçar a frustração, põe-se de pé, curva-se sobre a cama e lhe dá um beijo, dizendo:
─ Durma bem. Eu te amo.  
─ Não fique repetindo isso!   
─ O quê?  
─ Eu não gosto disso! 
─ Mas, Ana, eu sempre disse que te amava e tu nunca reclamou. Tu até respondia que me amava também.   
Acontece um momento de silêncio em que os dois tentam adormecer em vão. Ana ascende o abajur, levanta-se e vai ao banheiro. Ao voltar encontra Rodrigo na cama. 
─ Ana, deixe-me ficar aqui. Amanhã cedo vou embora e ficaremos uma semana longe ─ diz tentando abraçá-la. Ela sorri, mas o afasta de si.  
─ O que está acontecendo? Se todas as vezes que eu chego perto tu me repele, como vou saber quando posso me aproximar?   
─ Eu te mando um sinal de fumaça.  
─ O que está acontecendo?  
─ Nada! Eu só quero ficar deitada sozinha. Sei que é ruim quando não se é correspondido, mas... 
─ Ou nós somos ou não somos namorados ─ diz tocando o rosto dela com as costas da mão.  
Momento de silêncio...  
─ Eu não sei se nós somos namorados...  
─ O quê? Como assim tu não sabe? O que tu sente?  
─ Não sei, eu tenho dúvidas!  
Confuso, Rodrigo desce para o colchão.  
─ Quer dizer que nós estamos apenas passando um tempo? 
─ Eu não sei!  
─ Olhe, Ana, estou apostando todas as minhas fichas em nós dois. Já sofri, já fiz gente sofrer... Não se brinca com relacionamento.  
─ Eu não sei se nós temos um relacionamento. Nós só conversamos sobre assuntos metafísicos. Nem rir nós rimos mais.  
─ Mas relacionamento é sexo! 
Ela se vira, o fita bem nos olhos e coloca: 
─ Agora é tu que está exagerando. Sexo a gente encontra na rua.  
─ Tudo bem que tu esteja indisposta. Agora dizer “se eu quiser sexo eu encontro na rua”... Há muitas mulheres por aí que preferem ou gostariam de ter uma pessoa ao lado para satisfazê-las.   
Ela desliga o abajur. O quarto banha-se em escuridão. Minutos depois o ascende. Vê Rodrigo acordado. Abre um livro.  
─ Não consigo dormir...


Apesar de toda a decepção da noite anterior, Rodrigo dormira bem. Levantou-se mais cedo que o habitual. Enquanto Ana permanecia dormindo, sua mente trabalhava: “qual relacionamento? ela trata minhas questões pessoais no frio mármore de suas teorias... agora faz o mesmo em relação à nossa intimidade... que intimidade? somos tão inacessíveis aos sentimentos um do outro...”.
Em pé naquele quarto silencioso percebe pela primeira vez a verdadeira natureza de seu envolvimento com aquela mulher.  
"Bom dia" ─ ouve uma voz. Parece-lhe uma estranha aquela que se espreguiça a sua frente. Sente-se um invasor naquele quarto, perturbador da privacidade alheia.  
"Bom dia" ─ a voz repete. Sem responder, vai ao armário e veste seu casaco.  
─ Vou indo...  
─ Espere um pouco, eu já vou sair também. 
─ Pode ficar deitada. Já vou indo.
─ Rodrigo, em meia hora vou sair também. Eu te levo na rodoviária!
Momento de silêncio...
─ Vou esperar na sala.   
Vai até lá, olha em volta, vê o molho de chaves em cima da mesa. Abre a casa, atravessa o pátio, abre o portão. Retorna, vai à janela do quarto e bate. Ela se abre, emoldurando uma mulher nua de feições transtornadas e olhos marejados. Ele fita aqueles olhos, esticando o braço com as chaves. 
─ Que pessoa mais teimosa! ─ ela diz, apanhando as chaves.  
─ Adeus...
Ele dá meia volta e parte. Há alguns passos do portão ouve algo em tom embargado:
─ Rodrigo!  
Emoldurada pela janela, Ana demora-se ali, em silêncio, assistindo o amante atravessar o portão e sumir na vacuidade negra da madrugada fria.



S. E.

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